O artesão do frevo-saudade Há 40 anos, ia-se o maestro Nelson Ferreira, autor de músicas que ainda hoje não saem da boca de foliões apaixonados pelo carnaval do Recife

Publicação: 17/01/2016 03:00

O rádio antigo, na copa, tocava muitos frevos - e tocava tanto que meus pais sabiam a maioria de cor. Estavam a quase 200 quilômetros dos compositores daquelas maravilhas – uns artistas respeitáveis que comandavam orquestras, na capital –mas pareciam muito íntimos deles. Como os foliões do Recife e Olinda, que não chegam ao fim da festa sem ter cantado, pelo menos umas dez vezes, Evocação nº 1, mesmo não fazendo a menor ideia de quem foram Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon. Não importa. Conhecem o homem que conseguiu a proeza de tornar o quarteto inesquecível para milhares, mesmo sem nunca tê-lo apresentado, porque gênios são assim mesmo, surpreendem – e Nelson Ferreira era um. Foi-se há exatos 40 anos, porém legou uma herança musical difícil de ser ignorada, pois, sem ela, o carnaval de Pernambuco não deixaria de existir, mas a tradução de saudade ficaria incompleta.

Cresci com a obra de Nelson me parecendo extremamente familiar e longe de prever que, no futuro, aquelas audições todas seriam tão valiosas. Foi delas que me vali para fazer o projeto experimental de conclusão de curso – sobre a boemia, a música e a poesia do Recife – quando pude me aproximar ainda mais do universo do maestro, homem simples, de rigor profissional incomum e talento que redundou em enorme contribuição à cultura do estado. Basta dizer que aos 14 anos compôs a valsa Victória (para a Companhia de Seguros Vitalícia Pernambucana) e fez o primeiro frevo registrado pela indústria fonográfica, Borboleta não é ave, de 1923. Chamavam o menino nascido em Bonito (Agreste) de “Moreno Bom”, adjetivo que tanto servia para identificar o caráter quanto a mágica ao agitar a batuta. Com ela, Nelson deu vida a valsas, marchas, foxes e até tangos antes de se tornar, ao lado de Capiba, mestre do frevo. Gostava daqueles feitos sob medida para blocos tradicionais, que conseguiam chegar à alma dos foliões como um toque de confete.

Do Nelson que tocava piano para acompanhar as cenas dos filmes mudos, em cinemas da cidade, emergiu aquele com bagagem suficiente para impulsionar ou robustecer a carreira de outros grandes artistas como Antônio Maria, Luiz Bandeira, Sivuca, Aldemar Paiva e José Menezes. Diretor artístico da Rádio Clube de Pernambuco (1931), a única em atividade no Nordeste, à época, e da fábrica de discos Rozenblit, mostrou-se sensível, também, à necessidade de sobrevivência de outros ritmos igualmente pernambucanos – cirandas, cocos, repentes, aboios … Se era música regional, tinha espaço.

Diante da força que brota da maioria das cerca de 600 composições, parece pouco dizer sobre Nelson que se trata de um dos artistas nordestinos com maior número de músicas na discografia popular do país, embora a maior parte de sua produção musical permaneça desconhecida dos brasileiros. Mal sabem alguns que as valsas saídas do piano do maestro eram mais aplaudidas por aqui do que aquelas executadas em salas européias, como as de Johann Strauss. Sobre elas, escreveria o escritor Nilo Pereira: “Se meia hora antes de sair o meu enterro, tocarem as valsas de Nelson, velhas valsas tão íntimas do meu mundo, irei em paz, sonhando”.

Fazer sonhar, foi a que o trabalho dele se destinou. Mas a vida tem contradições, ainda mais quando se vive em uma terra de tão pouca consideração com quem constrói a riqueza da cultura. Nelson nunca mereceu do poder público um espaço dedicado à sua excepcional obra, assim como Capiba, e até a pequena casa onde morava, na Rua dos Palmares, foi abaixo para das as boas-vindas à Avenida Mário Melo. Ficaram as canções – e estas são imortais – para nos lembrar de um tempo bom e mágico como era a batuta do “Moreno Bom”.