O infortúnio da exploração das crianças abandonadas

Moacir Veloso

Publicação: 20/08/2018 03:00

Alguns dias atrás, à noite, vinha transitando por uma das ruas de Boa Viagem. Parei o carro em um cruzamento e tomei um susto ao ouvir o som de pancadas na parte inferior da porta do meu lado; Olhei e não vi ninguém. Em frações de segundos, novas pancadas. Baixei o vidro, olhei pra fora, e vi uma criança, de uns cinco ou seis anos de idade, olhando para mim, com as mãos estendidas. De imediato, procurei moedas que sempre tenho à mão para fazer caridade; não as encontrei, e disse para a criança: Estou sem trocados. Levantei a vista e vislumbrei um grupo de mendigas sentadas na calçada. Uma delas se dirigiu a mim em voz alta: Se não quer dar, cala a boca e vai embora. Deu-me vontade de descer e dizer-lhe um desaforo, mas logo desisti da ideia; a visão da criança com as mãos estendidas tocou-me fundo no coração, despertando-me forte compaixão. Primeiro, porque crianças em situações análogas àquela, existe aos milhões no país; segundo, porque esse flagelo absurdo, ao que tudo indica, vai continuar a existir independente da nossa vontade; e, por derradeiro, pela impunidade dos neoexcluídos, que fazem da mendicância uma atividade maligna, criminosa e altamente rentável. Esses pseudomendigos são responsáveis por, pelo menos, 245 pontos de mendicância infantil, somente na cidade de São Paulo, entre cruzamentos, semáforos e feiras livres. O mapeamento da cidade durou dois anos e foi coordenado pelo pedagogo Itamar Moreira, com ajuda do Instituto Social Santa Lúcia. O resultado foi publicado em 2009, no livro “O Trabalho Infantil na Cidade de São Paulo”, e revela que 25,7% das crianças e adolescentes estão em Pinheiros; 17,1% em Santo Amaro, zona sul, e 15,1% em Santana, zona norte. Lapa, Vila Mariana, Mooca, Jabaquara, Saúde, Moema e centro, são outras regiões de maior concentração desses menores. Muitos desses meninos e meninas são coagidos a trabalhar em atividades que envolvem riscos e exploração. A criança que trabalha apresenta sérios problemas de saúde, como fadiga excessiva, distúrbios do sono, irritabilidade, alergias e problemas respiratórios. O esforço físico pode prejudicar o seu crescimento, ocasionar lesões na coluna espinhal e produzir deformidades. Quem vive em centros urbanos se depara facilmente com crianças engraxates, flanelinhas, vendedores de pipoca, malabaristas, distribuidores de panfletos, catadores de latinhas, etc. Aqui em Recife, pelo que se vê nas ruas, a situação é a mesma, guardadas as devidas proporções. Sou testemunha ocular dessa barbárie social contemporânea. Ao ultrapassarem a adolescência, uma parte desse contingente infantil, não raras vezes, adquire sua emancipação, ingressando nas organizações criminosas que infestam o país em todos os níveis. Vão roubar, matar, traficar, estuprar, até encontrarem a morte prematura, seu trágico destino, como demonstram as estatísticas. No magistral “Cidade de Deus” (2002), todo esse malsinado enredo é retratado às últimas consequências, tal como um abcesso de fixação, incrustado sob a forma de uma favela do Rio de Janeiro. Para uns, as causas estão na ausência de políticas públicas na educação desses jovens, que seriam apenas vítimas dessa omissão; para outros a falta da presença do Estado nessas comunidades, aliada a um sistema repressivo deficiente e leniente, seriam as verdadeiras causas. Resta-nos conviver nessa selva de pedra, invocando sempre a proteção de Deus, para não sermos atacados por alguns desses seres perigosos que nos espreitam diuturnamente, e perder a vida.