Anotações de velhos tempos

Marly Mota
Artista Plástica, Membro da Academia Pernambucana de Letras
opiniao.pe@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 22/10/2018 03:00

As pesadas nuvens no horizonte escurecem mais o entardecer. A noite pela minha janela vejo a lua se posicionando entre distantes estrelas, ultrapassando-as pronta para iluminar à noite, com reflexo sobre minha cama no meu quarto, também ateliê. Os meus quadros na parede à lembrar que fui criança, com as primas da mesma idade brincando de ciranda, com a roda cada vez mais cheia de meninos da vizinhança. De Amarelinha, o chão tinha que ser riscado a carvão. Voltar para casa com mãos e a farda do colégio, da cor de fuligem, nem pensar! Os sinos, ao bater, às nove badaladas anunciava o horário já ultrapassado por nós, nas brincadeiras. Em casa, minha mãe refugiava-se com o seu bordado no bastidor para o melhor desempenho dos complicados pontos de crivo entre outros, que já ninguém lembra hoje! Minha mãe, anunciando o castigo, pela sujeira das fardas e mãos de carvão, sentenciou que passaríamos uma semana sem chocolates, praríamos os peixinhos de chocolate, os deliciosos sequilhos nem as deliciosas bolachas MARIA da Fabrica Pilar do Recife, na venda de seu Avelino. Só mais tarde, pela escritora portuguesa minha amiga Luiza Dacosta, que o nosso amigo escritor da Póvoa de Varzim, Manuel Lopes,a época considerava Luiza Dacosta a maior escritora viva de Portugal. Escreve-me Luiza Dacosta: Marly: Aleluia! A amizade de nosso amigo Manuel Lopes deu fruto ! e não apenas adorei, como me mandou o seu livro Janela onde me debruce, deliciada por ver que somos da mesma idade, lemos alguns mesmos livros, vimos alguns melhores filmes e (oh! milagre) ambas comemos sequilhos – docinhos já referidos no século XVIII por Correia Garson! Quer melhor?

Comecei a estudar piano aos oito anos, em Bom Jardim, com uma freira alemã, da Ordem Beneditinas, do meu Colégio Santana, na salinha do 2º andar (mal cabia o piano) ao deslize de uma nota falsa a vareta já voava das suas mãos nervosas para os meus pequenos dedos. Fui escalada à tocar numa festinha do Colégio. Com mãos e coração em discordância toquei a valsa de Brahms. (Compositor do meu enlevo musical desde então) Meu pai, sensível às artes especialmente à música, no auditório com minha mãe me ouviam tocar. Não havia piano na minha casa. Dias depois, foi ao Recife, ao Conservatório de Música, com o velho afinador alemão Seu Georg Foglein, troce-me de presente um piano Essenfelder (alemão) de excelente som, vinha também seu Foglein, para deixar o piano em ordem. Durante alguns anos, o velho alemão ocupara-se dessa tarefa, chegava de trem e hospedava-se na minha casa. O meu pai ainda adolescente tocou o instrumento de sopro bombardino, fazendo parte da Banda de música composta pelo 21 filhos, do 1º e 2º casamentos do seu avô do Engenho Passassunga . O mestre Zumba, que se tornou famoso compositor de frevos, foi o regente da orquestra. Corria o ano de 1941, época da II grande guerra Mundial. Meu pai escutava atentamente à P R A 8 - Rádio Clube de Pernambuco, com notícias da Guerra que chegavam ao Diario de Pernambuco pelo cabo submarino, enquanto o seu irmão caçula Zezito fora convocado pelo Exército Brasileiro, logo depois dispensado por ser daltônico Com minhas primas (eram muitas) saímos de braços dados pelos arredores, com alegria pelo nosso tio, fora do exército. Propositadamente passamos pela Rua do Frade, ao chalé da tia Marinete, que do portão já acenava sorridente convidando – nos à entrar. Via em todas nós possíveis futuras noras. A casa iluminada e convidativa Já perdera a solenidade tão aberta, sempre. Na sala, a vibração era contagiante. Alguns tocavam outros dançavam A música, juntou a vontade de dançar em todas nós. Aproveitamos o sereno ficando por lá mais tempo. De volta ainda ouvíamos a música e viibração dos rapazes enquanto caminhávamos, dando tons mágicos à nossa imaginação. Em casa lá do sótão o quarto iluminado nos esperava. A lua muito alta, fora eclipsada por forte aguaceiro. Dormimos com o barulho da chuva caindo na telha vã do sótão e torcíamos pela trégua do tempo no dia seguinte.