Tributo a Gena

Cláudio Lacerda
Cirurgião, Professor da UPE e da Uninassau

Publicação: 15/11/2018 03:00

Além de salvar vidas, produzir conhecimento científico e contribuir para o ensino da medicina e das demais ciências da saúde, nossa equipe, que já realizou cerca de 1300 transplantes de fígado, todos pelo SUS, nos hospitais Oswaldo Cruz, Jayme da Fonte e IMIP, tem tido o privilégio de conhecer pacientes que se revelaram pessoas incríveis. Isso porque nós os conhecemos e convivemos com eles nos momentos de crise. Momentos em que verdadeiramente se conhece um ser humano. 

Nos últimos meses de 1999, fui apresentado a Genival Costa de Barros Lima, o maior lateral direito da história do futebol pernambucano, que, aos 57 anos de idade, acometido de cirrose pelo vírus da hepatite C, em fase terminal, tinha no transplante de fígado a sua única chance de cura.

Acontece que, naquela época, estávamos apenas começando a realizar esse tipo de cirurgia e havia, no meio médico-científico, muita descrença em relação à viabilidade do projeto, tamanha a complexidade da cirurgia. Embora os dois pacientes até então operados tivessem sobrevivido, por se tratar de cirurgia que estava sendo realizada de maneira pioneira em todo o Nordeste, passei essas dúvidas para Gena com a sugestão de que ele procurasse um centro mais avançado, em São Paulo ou no exterior. Não faltariam pessoas da comunidade alvirrubra para ajudá-lo nas despesas.

Foi, portanto, no momento em que disputava o jogo mais decisivo e difícil da sua vida, que tive o privilégio de me tornar médico de um dos mais admiráveis seres humanos que conheci. Com uma tranquilidade impressionante, humilde e, ao mesmo tempo, firme e resoluto, como se estivesse disputando uma bola em desvantagem, 30 anos antes, ao apertar minha mão foi logo declarando que queria ser transplantado aqui, que aqui era o seu lugar, que confiava na nossa equipe, que logo surgiria um doador compatível e que tudo daria certo. Eram as palavras de alento, de confiança e de motivação que precisávamos ouvir naquele momento histórico de incertezas. Palavras de um pernambucano vencedor. Palavras de um hexacampeão.

Gena entrou na lista de espera. A enfermidade, porém, se agravava rapidamente e as internações se tornavam mais frequentes. Ele havia adquirido o vírus C, seu maior adversário, naquelas injeções de energéticos, ou sei lá do quê, que certos treinadores da época aplicavam nos atletas antes dos jogos. A seringa, de vidro, compartilhada por todos, era fervida por 10 minutos. Vários outros jogadores de futebol daquela geração também contraíram a doença, alguns deles transplantados por nós, posteriormente, como Hagápito, Nino e Gilson Costa.

Em 23 de maio de 2000, aos quarenta minutos do segundo tempo, com o placar adverso, eis que surge, finalmente, o doador de Gena. Bola lançada na área, a chance do começo da virada.  Com o corpo exaurido, mas o semblante de alegria e o mesmo espírito de guerreiro dos gramados, ele atende à convocação para a cirurgia e se apresenta sorridente no hospital.

A intervenção durou dez horas, mas ocorreu de maneira tranquila. Algumas dificuldades pós-operatórias foram superadas e em alguns meses ele estava totalmente recuperado e trabalhando normalmente.

No ano seguinte, minha equipe, um verdadeiro time, inclusive de futebol, foi convidada para uma pelada e um churrasco no CT Wilson Campos, por ocasião do primeiro aniversário do transplante. Jogamos contra os veteranos do Náutico, liderados por Salomão Couto. Fui marcado por Gena, mas fiz dois gols. Claro que não faltou quem dissesse que ele havia facilitado. Pior, enfiaram-me numa camisa vermelha e branca horrorosa, fotografaram e ainda disseram que iriam mandar a foto para o meu irmão Homero, como prova do crime de “vira-casaca”. Ainda bem que não havia mídia social na época!

Ao longo dos 18 anos seguintes, cresceu ainda mais a minha admiração por esse ser humano tão especial. O Céu está em festa.