Dissecando João Cabral de Melo Neto

Luciano Alberto de Castro
Professor adjunto da Faculdade de Odontologia - Universidade Federal de Goiás

Publicação: 19/01/2022 03:00

Aos fãs do escritor em tela, preciso advertir que este texto não tem a intenção de esquadrinhar a sua genial literatura (até por uma questão de espaço e expertise deste humilde cronista). Àqueles que o desejarem, recomendo os livros do ensaísta e poeta Antônio Carlos Secchin, o maior “cabralólogo” de todos os tempos. Caso o interesse seja a vida do bardo, existe a biografia assinada por Ivan Marques, que ainda não li, mas da qual tenho ótimas referências. Enfim, se o assunto é JCMN, os dois autores o contemplam plenamente. Essa croniqueta propõe algo bem mais simplório.   

O que trago aqui é um mero exercício de onomatomancia, palavra complicada que, segundo Caldas Aulete, é a “arte de adivinhação baseada em supostas correspondências vaticinadoras entre o nome de alguém e as letras que o compõem”. Trocando em miúdos, a onomatomancia acredita que o nome da pessoa traduz muito do que ela é. Otto Lara Resende escreveu sobre isso numa de suas crônicas: “dize-me o teu nome e dir-te-ei quem és”. Concordo com o Otto: se eu não me chamasse Luciano Alberto de Castro, não seria quem sou. Ao dissecar cada parte do nome João Cabral de Melo Neto, que mais parece um verso do que um nome, vocês irão concordar comigo.

De cara, o prenome João ostenta uma brasilidade intrínseca, orgânica, muito interessante para um diplomata. Além de ser bem brasileiro, João é nome curto, reto, sem ondulações como Aristides ou Bartolomeu. Brasilidade e objetividade são características marcantes do poeta-diplomata. Vamos mais longe: João é também um nome carregado de afeto. Meu filho, por exemplo, se chama João Gabriel; mas gosto de chamá-lo apenas de João: é mais carinhoso, mais familiar. Eis que aflora aqui uma revelação: embora publicamente transpareça ser homem austero, a onomástica sugere que, na intimidade, o bardo era uma pessoa amável, a quem os amigos tratavam simplesmente de João.

A etimologia diz que o sobrenome Cabral proveio da cabra, surgiu como uma designação àqueles que moravam em local de criação ou pastagem de cabras. Por isso, o nosso João é também Cabral; a sua substância poética tem a dureza e a rusticidade da cabra. Tanto da cabra branca, nordestina, moxotó como da cabra-montesa, negra, mediterrânea. Ambas são um tipo de “animal sem folhas, só raiz e talo”, um bicho arredio e obstinado que gosta de habitar nas pedras e escarpas. Não há lirismo no viver da cabra, assim como não há lirismo em João Cabral. Seu texto não é, em nada, subjetivo, enlevado, sentimental, mas sólido, áspero, pétreo. Um texto caprino.

O Melo remete a mel, melado, melaço e outras conformações do açúcar. Isso é facilmente dedutível. A genealogia de João Cabral está entranhada na cultura da cana-de-açúcar, nos velhos banguês e suas casas de purgar, nos canaviais que conversam com o mar. Foi nesse universo cortante como a folha da cana que o menino rapsodo forjou sua poesia. Ali, João Cabral fotografou as incongruências, crueldades e iniquidades da sociedade severina. Dali, ele extraiu o melado grosso e amargo que provamos na sua obra.

O Neto é obviamente uma referência ao avô paterno e, por extensão, a toda a dinastia dos Melo em Pernambuco. Mas reparem vocês como a onomatomancia transpassa o óbvio. É sabido que João Cabral era diplomata e viveu muitos anos na Espanha, e por conta disso, as paisagens andaluzes, a dança e própria língua espanhola estão muito presentes na sua poesia. Pois bem, neto em espanhol é um adjetivo que significa “limpo, puro, bem definido”. Existe, inclusive, a expressão contenido neto, que se refere à quantidade de um produto excluindo-se todos seus invólucros, ou seja, o constituinte puro, a essência. Assim também é JCMN: tutano, âmago, cerne.

Bem, caros leitores, findo o exercício, não sei se consegui convencê-los dos prodígios da onomatomancia. De toda sorte, essa lucubração, um tanto pretensiosa, serve como homenagem, como reverência ao poeta do concreto. Aquele que caminhou sozinho na poética brasileira, talvez o único que desprezou suas divagações internas e voltou seu fazer poético para o exterior. Relógio, faca, pedra, rio, montanha ou o sertanejo, essa era matéria que atiçava o engenho inigualável de João Cabral de Melo Neto.