Publicação: 21/09/2018 03:00
Aline Moura
aline.moura1@diariopernambuco.com.br
De passagem pelo Recife, quando veio lançar a autobiografia Zé Dirceu – memórias, volume 1, o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, considerado como o titular do primeiro escalão mais poderoso do primeiro governo Lula, está mudado. Dessa vez, a mudança não se deu por causa de plástica facial, como ele fez em duas ocasiões anteriores, durante a ditadura militar. A arrogância que ele mesmo admitia ter no passado, arrefeceu. Dirceu estava de camisa polo, fita vermelha do Senhor do Bonfim no pulso esquerdo, com voz baixa, e mãos que “falavam” bastante. Mas frisou já ter reconstruído a vida do zero antes e fará o mesmo depois de ficar um ano e nove meses preso, entre o Complexo da Papuda e o Centro Penal-Médico. Está determinado a limpar o próprio nome e contar sua versão da história. No livro, destaca que ficou “banido” dentro do próprio país depois da Ação Penal 470 e precisou lutar pela sobrevivência.
A exclusiva ao Diario de Pernambuco com José Dirceu durou meia hora, logo depois de ele conceder uma longa entrevista coletiva de uma 1h02 minutos, no Sindicato dos Servidores Públicos Federais de Pernambuco. Aos 10 minutos de conversa com a reportagem, a assessoria de imprensa pediu, gentilmente, que as perguntas fossem encerradas, porque ele tinha outros compromissos e estava cansado. O ex-ministro, no entanto, respondeu estar disposto a continuar.
Para ele, se encerrasse ali, a entrevistadora não teria direito ao contraditório e ele precisava falar para “o Diario de Pernambuco, o mais importante (jornal) do estado”. Dirceu falou dos motivos que o levaram a escrever o livro – com dedicatória à filha Maria Antônia – que tinha três anos quando ele foi preso e condenado pelo Mensalão. Ele viveu em Pernambuco por um tempo, depois de retornar do exílio em Cuba, no início dos anos 1970. Escolheu o Nordeste para viver como clandestino, como o nome falso de “Carlos Henrique Gouveia de Melo”. Conseguiu se “implantar” porque tinha um amigo no estado chamado João Leonardo da Silva Rocha, militante da mesma organização de luta armada que Dirceu, o Molipo (Movimento de Libertação Popular). Dirceu contou com ajuda dele para se estabelecer no país pela segunda vez. O personagem criado por Dirceu, ensaiado e decorado por mais de um ano tinha “brigado com a família e os irmãos e veio tentar a vida no Nordeste”.
Na obra, Pernambuco é citado pelo menos 14 vezes pelo ex-ministro, o nome de Miguel Arraes, 21. O ex-governador Eduardo Campos é mencionado em duas ocasiões, lembrado com um líder político que lhe hipotecou solidariedade e virou noites com ele na Casa Civil para barrar a CPI dos Correios, sem obterem sucesso. A entrevista com Dirceu fala dos desafios que ele enfrenta e do que ele pensa sobre o país nos dias atuais. “Eu e Lula podemos trabalhar por telepatia”, ressalta, ao falar de sua relação atual com o ex-presidente.
Entrevista José Dirceu // ex-ministro da Casa Civil no governo Lula
O senhor viveu um pouco em Pernambuco durante a ditadura. Pode falar um pouco sobre isso?
Eu vivi na década de 1970, nós tínhamos um companheiro que morava em São Vicente Ferrer, entre São José do Egito, descendo para Patos, da Paraíba. Eu estive aqui no culto ecumênico pela memória dele em 2011, João Leonardo da Silva Rocha (bancário e professor). Quando eu voltei duas vezes para o Brasil, eu tinha contato com ele e fiquei em Caruaru, no hotel Guanabara, inclusive acho que foi demolido. Eu ficava entre Caruaru, Campina Grande, Patos, Cajazeiras, Juazeiro, Salgueiro, Arcoverde, Serra Talhada, vivi um tempo, porque tínhamos que fazer contato. Eu já estava clandestino no Brasil lutando contra a ditadura, em 1971. Na segunda vez que vim (ao estado), em 1975, estava tentando recontatá-lo (João Leonardo era o único militante do Molipo vivo). Percebíamos que tinha acontecido algo grave com ele, ele foi assassinado pela ditadura, quando fugiu para a Bahia, assassinado em Palmas de Monte Alto (em junho de 1975). Ele era baiano. Então, conheço bem Pernambuco. Depois, eu voltei já como presidente do PT e como ministro. Depois desses anos todos, voltei para provar minha inocência. Tive grandes amigos aqui e sempre lembro. Além do governador Miguel Arraes e de Eduardo Campos, (o ex-senador) Carlos Wilson foi um grande amigo.
Como está sua relação com Lula atualmente?
Excelente. Eu não tenho visto Lula desde que fui preso, mas tenho mantido contato através de dirigentes do PT e da família. Lula sempre foi solidário comigo. Eu e Lula podemos trabalhar por telepatia. Não há nenhum inconveniente, nada que nos afaste. O que podemos ter é divergências mútuas e muitas vezes decepções mútuas. Ele também deve ter ficado decepcionado comigo muitas vezes. As pessoas confundem o que eu relato no livro... Mas ninguém se iluda em relação a isso: minha lealdade a Lula, meu companheirismo com ele é inquestionável, ele sabe disso. Divergência tivemos muito na história do PT, mas a questão que mais chamou a atenção e, isso está no livro, foi quando eu pedi demissão, fui demitido do governo. O problema não era sair do governo, era sair do governo com um plano de luta, uma estratégia, com uma tarefa e uma missão e eu fiquei com as mãos vazias.
O senhor se sentiu abandonado?
Não, porque a militância me apoiava, os dirigentes me apoiavam, Lula me apoiava. Mas o partido não foi capaz de estabelecer uma estratégia, pelo contrário. Uma parcela do partido tentou me expulsar várias vezes. Aliás, a fraqueza do PT foi a divisão, porque a CPI dos Correios saiu (por causa dessa divisão).
Quando o senhor fala que a divisão do PT foi a fraqueza, a gente lembra que muitas pessoas do PT saíram para o PSol, para a Rede... E muitos acreditam que o senhor foi o chefe da quadrilha do Mensalão.
O Supremo disse que eu não era chefe da quadrilha, por isso estou livre. Todo mundo sabe que eu fui condenado por corrupção passiva sem provas, como a literatura jurídica permitia, segundo uma ministra. O outro disse que o ônus da prova cabia aos acusados; o outro ministro disse que era domínio de fato...Nós sabemos que domínio de fato não tem nada a ver. O domínio de fato foi criado para, após a condenação de criminosos de guerra, você fazer a dosimetria de quem tinha domínio de fato e quem não tinha. Quem era mandante e quem era o subordinado e juntos praticaram o crime. Não tinha nada a ver com meu caso. Até porque não tinha nenhum ato de ofício que me condenasse e eu fui indiciado pela CPI sem o inquérito policial terminar, sem Ministério Público se pronunciar, é uma situação... Então, essas divisões que aconteceram no PT (ajudaram).
Militantes de Bolsonaro dizem que ele não diminui as mulheres, não é racista, nem homofóbico... O PT quer conquistar esse público ou desistiu?
Ele (Bolsonaro) disse que não conseguiu acertar nas quatro vezes que teve filhos, porque uma saiu mulher; se isso não for misoginia, eu não sei o que é. Ele disse que daria porrada no filho se o filho fosse homossexual. Se isso não é homofobia, eu não sei o que é. Mas eu não acredito que a maioria do país seja como esses que estão votando em Bolsonaro, acreditando que tudo que falam do Bolsonaro é mentira. Tudo que se fala do Bolsonaro é porque ele mesmo falou, ninguém inventou.
Os adversários falam que Fernando Haddad é o “novo poste” de Lula.
Essa questão de poste...Fernando Henrique não ia ser eleito deputado federal em 1994 (ano que ganhou a Presidência da República), senador, nem pensar! Ele tinha perdido uma eleição para São Paulo de maneira humilhante em 1985. Ele era suplente do Franco Montoro. E ele governou o Brasil durante oito anos. Você pode discordar das políticas dele, mas ele foi presidente. Então, essa história de poste é uma invenção. Haddad já mostrou, na Prefeitura de São Paulo, e já mostrou na campanha, como ministro da Educação, que tem condições de ser presidente. Isso é uma forma de tentar desqualificá-lo.
Na sua avaliação, hoje, qual o maior problema do Brasil?
O maior problema é que precisa de um governo que tenha uma maioria e enfrente os problemas do país. Na direção contrária que o Temer fez. A gente precisa de um presidente que enfrente o problema dos juros, enfrente o problema da reforma tributária, da reforma política, enfrente o problema da democratização dos meios de comunicação. O desafio de quem ganhar a eleição é de como mobiliza o povo, forma a maioria e governa. O Lula conseguiu.
Mas Lula já fez alianças criticadas, tirou foto com Paulo Maluf. Esse tipo de aliança não vai acontecer de novo com o PT?
O PT nunca aplicou a política do Maluf. Não sei porque essa foto foi chocante. Quando o Richard Nixon (então presidente norte-americano) foi à China e cumprimentou o Mao Tsé Tung foi chocante (o momento foi considerado histórico, em 1972, foram sete dias que mudaram o mundo). Quando Henry Kissinger (assessor especial de Nixon) sentou à mesa para fazer os acordos de paz para cessar fogo no Vietnã foi chocante. O Lula não fez nenhum acordo com o Maluf. Não seguiu nenhuma das políticas de Maluf. Isso é uma figura de retórica para explorar que a política é suja. A política não é suja. Você pode se encontrar com teu adversário e negociar um acordo se o custo de continuar a luta é maior do que se você fizer um acordo. Você pode fazer um acordo para conseguir pequenos avanços quando você não tem força. Você não pode ficar sem fazer nada e só querer o grande avanço. Isso é da vida do ser humano, das famílias, das empresas (fazer pequenos avanços para seguir).
A então rainha da França, Catarina de Médici, dizia que era impossível um rei governar sem o apoio dos nobres. Como vocês vão recompor a aliança com o empresariado que hoje demostra ódio com o PT?
Isso é uma piada, né? Eles nunca ganharam tanto como no governo do PT. Primeiro, (o ódio) é por causa do egoísmo social deles. Eles não querem ceder nada da renda deles, nem pagar impostos para resolver os problemas do povo brasileiro e nosso governo caminhava para isso. Eles sabiam que ia chegar a hora da reforma tributária, de baixar os juros, de taxar o lucro, os dividendos, a herança, de mudar a estrutura tributária brasileira. Esse desafio (de se reaproximar com o empresariado) qualquer um que ganhar a eleição terá.
Sua foto, no seu livro, o senhor está com cara de galã, fumando um cigarro num momento em que estava sendo preso, num camburão. O senhor chegou, naquela época, com um semblante bom. Qual a diferença dessa prisão agora?
Quando eu fui preso, tem a cena minha se entregando a Polícia Federal com o braço erguido, porque eu sou inocente, aquela prisão foi ilegal. É mais grave agora, na democracia, do que na ditadura. Ditadura é ditadura, ela suspendeu habeas corpus, censurou, torturou as pessoas, assassinou. Uma ilegalidade cometida em nome da democracia, uma injustiça cometida pela Justiça é a pior injustiça que tem. Preso sofre, tem saudade da família, chora. A prisão é a pior coisa que existe porque a gente perde a liberdade. Só não podemos perder a coragem, a dignidade, eu sempre tive a consciência que eu tinha que lutar na prisão pela minha liberdade e lutar pelo que estava acontecendo no país. Lá dentro da prisão eu tinha que encontrar meios de lutar e o primeiro meio é ter saúde física e mental. Segundo é você estudar, aprender, inclusive sobre o sistema penitenciário. O terceiro é você produzir, trabalhando em qualquer coisa, consertando roupa.. Eu trabalhei na biblioteca. Eu cheguei a ler 100 livros e fichei 30 em um ano e nove meses e escrevi 700 páginas das minhas memórias, numa folha de papel com uma caneta Bic, sentado na cama. (A entrevista completa estará disponível domingo no site do Diario)