DIA DA CONSCIêNCIA NEGRA » Lacraia fez do Santa o clube da inclusão Teófilo Baptista de Carvalho fez do Santa Cruz a primeira voz nordestina a incluir os negros do ainda nascente e elitista futebol no Brasil

Felipe Holanda
Especial para o Diario
felipe.silva@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 19/11/2022 06:30

O preto está eternizado como a cor mais latente da história do Santa Cruz, desde suas entranhas aos dias atuais. E não por acaso. Quando nasceu, em 1914, trouxe consigo um manifesto por igualdade racial. O baluarte dessa luta contra o racismo tem nome, sobrenomes e apelido: Teófilo Baptista de Carvalho, mais conhecido como Lacraia. Ele foi um dos fundadores do clube, chamando atenção nas fotos antigas misturado a todos os outros brancos, num esporte - à época - tão elitista.

Para mergulhar na história de Lacraia, o Esportes DP - numa verdadeira viagem nas areias do tempo -, entrevistou seu bisneto, Gil Baptista Bacelar Neto, no palco que seu bisavô não atuou, mas viu se erguer, o estádio do Arruda. Vindo três gerações depois, Gil não tem a mesma cor de seus antepassados, mas se orgulha do sangue que corre em suas veias. “É uma honra muito grande ter na família um negro, que fundou o Santa Cruz e foi tão importante nessa história. Na nossa família nunca houve nenhum tipo de distinção quanto a cor, somos todos iguais. Desde pequeno a gente aprendeu isso.”

Sem ter conhecido o bisavô pessoalmente, ele guarda na memória todas as histórias contadas pelo pai, Gil Baptista Bacelar Filho. Num dos diálogos relembrados, lhe vem à mente talvez a maior mágoa da vida de Lacraia. Por um viés cruel do destino, o ídolo não compareceu para assinar a ata de fundação, já que estava prestando vestibular na mesma data e hora.

“Ele lamentava muito não poder assinar a ata, acho que o clube até poderia mudar isso em nome da história. Meu pai sempre falava dele com muito orgulho. Quando Lacraia recebeu homenagem no centenário do Santa e meu pai estava lá, foi um dia muito alegre para ele e para todos da família”, relembrou com saudade de seu genitor, hoje já falecido.

Não há nenhum registro oficial sobre o falecimento de Lacraia, e nem alguém da família vivo capaz de cravar, mas algumas informações dão conta que o óbito ocorreu em 1975. Em campo, ele não conquistou nenhum título pelo Santa, mas teve representatividade de sobra, seja como jogador ou treinador. Além das quatro linhas, é lenda. O único a imprimir marcas indeléveis na história coral: a da inclusão racial e da identidade visual.

Vale destacar, também, que Lacraia também foi responsável por desenhar o escudo do Santa Cruz. A mudança veio após a perda de um sorteio para o Flamengo-PE, também alvinegro. Segundo regulamento da extinta Liga Sportiva Pernambucana,o Estadual não poderia ter duas equipes de cores iguais. Assim, com pinceladas de Lacraia, nasceu o tricolor em preto, branco e vermelho. Depois de pendurar as chuteiras, o ex-atleta, formado em Engenharia, foi por muitos anos superintendente do Banco do Brasil.

Os outros principais clubes da capital, como América, Náutico e Sport só vieram aceitar negros anos depois. A discriminação também acontecia nos principais eixos do Brasil, mais focado na Região Sul-Sudeste, salvo raras exeções. O Santa foi pioneiro no Nordeste.

DESDE OS PRIMÓRDIOS

Nos primórdios, inclusive, o futebol brasileiro deu seus primeiros passos num viés racista. Em 1921, o então presidente Epitácio Pessoa sugeriu que fossem convocados apenas jogadores brancos para a disputa do Sul-Americano daquele ano. Atualmente, entretanto, é evidente o reconhecimento da cor no desenvolvimento do esporte - o melhor de todos os tempos é Pelé, eleito o atleta do século 20 pela revista France Football. Além dele, tantos outros se destacaram, como Didi, Jairzinho, Romário e Ronaldinho Gaúcho, só para ficar numa lista com campeões do mundo.

Segundo dados do Observatório do Racismo, a primeira equipe a utilizar um atleta negro foi a Ponte Preta. O time campineiro, em 1900, teve entre seus fundadores Miguel do Carmo, considerado o primeiro negro a atuar dentro das quatro linhas no país. Desde 2003, é celebrado em 20 de novembro o Dia da Consciência Negra numa alusão à morte de Zumbi, chefe do Quilombo dos Palmares.

Saiba mais

Outros clubes que inseriram os negros no futebol brasileiro


Ponte Preta:
Fundado em 1900, o clube campineiro teve o primeiro atleta negro da história, Miguel do Carmo, que foi um de seus fundadores;

Bangu-RJ:
O alvirrubro carioca também foi um dos pioneiros quando, em 1905, escalou o operário Francisco Carregal; anos mais tarde, o Bangu sofreria represálias;

Internacional:
No Sul, o Inter foi o primeiro a utilizar um atleta negro, em 1920. O ponta-direita Dirceu Alves foi o primeiro de cor escura a vestir a camisa colorada;

Vasco-RJ:
Em 1921, o Cruzmaltino foi impedido pela federação de disputar campeonatos estaduais. Em resposta, escreveu uma carta a favor da igualdade racial, cultura que ostenta até os dias de hoje.