Receita que desafia a lógica Fundada em 1928, o estabelecimento %u201CAs Galerias%u201D, com seu maltado cubano, acompanha os períodos de ascensão e decadência do Bairro do Recife

Ed Wanderley
edwanderley.pe@dabr.com.br

Publicação: 11/05/2014 03:00

Tradicional ponto funcionou durante muitos anos no coração do Bairro do Recife, hoje está situado em outro prédio na mesma localidade (FOTOS: JAQUELINE MAIA/DP/D.A PRESS)
Tradicional ponto funcionou durante muitos anos no coração do Bairro do Recife, hoje está situado em outro prédio na mesma localidade

No coração de um complexo portuário que o tempo fez dar espaço à cultura e ao lazer, receitas se misturam à história de um distrito. Como o Bairro do Recife que lhe abriga, “As Galerias”, aos 85 anos, contabiliza períodos de ascensão e decadência, que acompanham a relevância social da própria região. Durante todo esse tempo, o estabelecimento serviu o maltado cubano com o tradicional bolo de trigo com castanhas, dividindo espaço com os prostíbulos de um Recife sempre antigo.

Fundada em 1928, o negócio funcionou por 74 anos no encontro das Ruas Marquês de Olinda e Rio Branco, no prédio da Companhia Aliança de Seguros da Bahia. Declarada Patrimônio Cultural, Gastronômico e Imaterial pela Prefeitura do Recife no último dia 29, hoje, a lanchonete sobrevive na Rua da Guia, depois de passar sete anos na Bom Jesus. “As rachaduras nas paredes são o retrato de quem se manteve aqui contra toda a lógica”, resume o proprietário da terceira geração da família, Jorge Gomes, 39.

Área de bordel foi a escolhida

O letreiro original permanece na parede. O mesmo que, na década de 20, Fidélio Lago investiu as economias para fixar-se no Recife. Vindo de Cuba, apostou na receita de família, com sorvete e malte de cacau caseiro, para tirar o sustento. A área escolhida, nas proximidades do Porto do Recife, inaugurado há dez anos, era uma região pouco nobre, frequentada por estivadores, marinheiros e homens que buscavam as discretas ruas do bairro para embebedar-se no licor de mulheres do baixo meretrício, a zonear logradouros, associando-os a diferentes níveis de qualidade e prazer. Alugado, o imóvel também servia de morada, sem que as mulheres da família pudessem aparecer nas janelas. 

Os dois planos da família

Aos poucos, recifenses redescobrem o caminho do leite com malte de cacau. “Vim aos 13 anos, com uma tia. Hoje, trouxe meu filho, que conheceu o lugar num passeio de bicicleta. É um prazer meio nostálgico”, diz a empresária Roberta de Moraes, 47, sobrinha-neta do poeta Vinícius, junto ao filho Daniel, 15, e a nora.  “Agora descobrem que ainda estamos abertos”, conta Jorge Gomes, que atende quase 3 mil pessoas por mês. Recifenses em busca de sabores para degustar junto a memórias. À família, de raízes cubanas, restam dois planos: devolver As Galerias ao prédio de origem, de onde saíram há 13 anos e chegar aos 100 anos fazendo parte de um local que é história e cultura por si só.

Pioneiro no drive

Aos 12 anos, Jorge Gomes começou datilografando vales. Pouco depois, assumiu a caixa registradora do pai, Antônio Gomes, que mantém no balcão até hoje. Comparado aos móveis, ele não testemunhou metade das histórias do lugar. Ouvia falar da polícia “Cosme e Damião”, que recolhia menores de rua à noite, para que o bairro fosse tomado por prostitutas. “O ‘Antigo’ não era lugar de gente decente, mas o maltado era tradição. Famílias vinham, paravam e eram servidas em suportes feitos para as portas dos automóveis”, lembra, sobre o possível primeiro drive-through do Recife.

Um zepelim sobre o teto

Quando o Porto do Recife ascendia, esquentava o comércio - e a relevância - do bairro. Em 1930, antes de chegar ao Jiquiá, onde pousou, foi sobre o prédio de As Galerias que o dirigível LZ 127 Graf Zeppelin “estacionou”. Para os frequentadores do local, pouco importavam as insígnias nazistas da geringonça. Aliás, esses símbolos pouco foram relevantes em sua história. Seu balcão foi palco de reuniões estudantis mais formadas por moleques fujões de aulas em colégios nobres do centro que por revolucionários politizados. “Tomávamos maltado à tardinha, no final da década de 70. Era o ‘esquente’ antes de irmos ao Chanteclair, Black-tie”, lembra o produtor Roberto Andrade.

Com a inauguração do Porto de Suape, em 1983, para lá se foram boa parte dos negócios do Porto do Recife. Com eles, clientela, marinheiros e até prostitutas. “O centro não perdeu a função de carga e descarga, mas a política de diminuir a relevância do Recife culminou com a extinção da Portobrás. A função estratégica foi reconquistada nos últimos anos”, diz o diretor de operações do Porto, Carlos Vilar.