Zumbi dos Palmares, um grande herói brasileiro
"Negro de singular valor e constância rara" ele liderou o maior movimento de resistência popular ocorrido no País
Paulo santos de oliveira
psoliveira@hotmail.com
Publicação: 06/06/2016 03:00
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Não ficaria tão satisfeito se soubesse quem acompanhava Antônio...
MODELO AFRICANO
Corria o ano de 1655 quando o bondoso padre Antônio Melo, vigário da vila de Porto Calvo, na comarca pernambucana das Alagoas, ganhou de presente “uma cria do sexo masculino, com escassos dias de existência”, de um casal de escravos fugitivos. Batizado de Francisco, o menino logo mostrou “engenho jamais imaginável na raça negra e que bem poucas vezes encontrei em brancos”. E “quando cumpriu dez anos, já conhecia todo o latim que há mister, e crescia em português muito a contento”, segundo o religioso, que pensava em fazer dele sacristão. Aos quinze, porém, o garoto, que sempre apresentara “uma cordura perfeitamente cristã”, fugira para Palmares. E só voltara tempos depois, já como poderoso chefe quilombola, levando presentes para o padre Antônio, que vivia na miséria.
Na língua bantu, a palavra “kilombo” significa cemitério, ou paragem de caravanas. No Brasil, nomeava as comunidades independentes formadas por escravos fugitivos do cativeiro, índios, brancos e mulatos pobres. E, dentre os muitos que havia, Palmares era o maior, com vinte a trinta mil habitantes divididos em vários povoados chamados de “mocambos”, ou “cercas”.
Politicamente, organizava-se como uma nação africana. Cada mocambo era governado por um chefe, escolhido em assembleia, os quais, por sua vez, formavam um conselho que julgava as questões mais sérias e escolhia o “grande chefe”. Das portas das casas para dentro, porém, mandavam as mulheres.
UM REINO FEMININO
Os chefes, naturalmente, tinham tantas esposas quanto quisessem ou pudessem. Zumbi, por exemplo, tivera várias. Mas, para a maioria, não era assim. Havia muita falta de mulheres, e cada homem que chegava era colocado em uma família comandada por uma delas. E cada família, por sua vez, recebia um lote de terra para cultivar. Porém, não era dona do que produzia.
“Entre eles, tudo é de todos e nada é de ninguém, pois os frutos do que plantam e colhem, ou fabricam nas suas tendas, são obrigados a depositar nas mãos do conselho, que dá a cada um quanto requer seu sustento”, assim relatou o holandês Rodolfo Baro, que guerreou contra Palmares no tempo da invasão flamenga.
Entretanto, mantinham a escravidão. Só quem chegava lá por seus próprios meios era considerado livre. Para conseguir alforria, contudo, bastava a um escravo trazer outro para substituí-lo. Assim, os povoados e engenhos vizinhos eram constantemente desfalcados das suas “peças”, sendo esta a maior causa do ódio dos brancos e das dezenas tentativas de destruir Palmares, ao longo de um século. Sem resultado.
Em 1677, porém, Ganga Zumba, o grande chefe palmarino, fora derrotado num desastroso combate. E o governador Pedro de Almeida aproveitara a ocasião para firmar com ele um acordo de paz, que previa a mudança do quilombo para outro local e a devolução de todos os escravos fugidos, não nascidos por lá. Uma cláusula que, naturalmente, desagradou muitos quilombolas. Inclusive, Zumbi.
O SANTO DERROTADO
Chefe de um dos mocambos, Zumbi era um “negro de singular valor, grande ânimo e constância rara, cuja indústria, juízo e fortaleza aos nossos serve de embaraço e aos seus de exemplo”, na descrição de umfuncionário português. E, com a energia dos 23 anos de idade, ele expulsara Ganga Zumba e mantivera de pé o velho e marrento Palmares.
Em vista disso, a guerra recomeçara, com as “entradas” dos capitães André Dias, em 1680, e João da Cunha, em 1684. Ambas derrotadas. Então, em 1685, chegara um novo governador, João Souto Maior, trazendo uma carta do rei de Portugal para o quilombola, oferecendo-lhe perdão. Mas nem isso foi levado em conta por Zumbi, desinteressado em qualquer acordo com os brancos.
Completando
Horrores do cativeiro
Após as duríssimas viagens nos navios negreiros e a humilhação da venda em mercados públicos, os escravos ficavam entregues à perversidade dos seus donos. Por qualquer “malfeito” eles podiam ser metidos em instrumentos de tortura como “troncos”, “viramundos”, “cepos”, “libambos”, “gargalheiras”, “golhilhas”, “anjinhos” ou máscaras de flandres. O castigo mais comum, porém, era o açoite, com requintes de crueldade. João Fernandes Vieira, por exemplo, numa instrução aos seus feitores, recomendou que “depois de bem açoitado (o punido), será picado com navalha ou faca que corte bem, e dar-lhe-á com sal, sumo de limão e urina, e o meterá alguns dias na corrente. E, sendo fêmea, será açoitada com baiona (urtiga), dentro de casa, com a proibição de lhe bater com pau, pedra ou tijolo”.
Os escravos também passavam fome sistematicamente, a ponto de os proprietários misturarem um óleo fedorento ao azeite das lamparinas, para que eles não o lambessem. E, por conta disso tudo, o padre Antônio Vieira, num sermão dirigido aos cativos, lhes disse, piedosamente, que “não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz e à paixão de Cristo que o vosso”. Já o céu, para eles, no Brasil, certamente ficava em Palmares.
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