Doutrina à luz da própria fé
Com crenças indígenas, africanas e de vida em outros planetas, Vale do Amanhecer chega a 50 templos no estado
reportagem: João Vitor Pascoal
joaovitorpascoal@diariodepernambuco.com.br
Publicação: 14/01/2017 09:00
É tarde de uma quarta-feira, dia de movimento fraco, e algumas dezenas de pessoas sentam-se ao lado direito da porta de entrada de um grande templo, logo após uma elipse metálica, de quatro metros de comprimento, com um desenho estilizado e colorido da cabeça de um jaguar. São pacientes. Após algumas ladeiras na Cidade Tabajara, chegaram - por problemas familiares, de saúde, financeiros, espirituais ou existenciais - ao Olinda do Amanhecer, templo precursor do Vale do Amanhecer no Nordeste, fundado em 1975 e, até hoje, um dos mais grandiosos entre os quase 50 erguidos em Pernambuco. E saem sem promessas. Apenas com conselhos dados por pretos velhos, entidades de matriz africana, que, incorporadas a médiuns, procuram dar clareza a quem, na aflição, enxerga turvo e nublado.
A área éisolada, mas nos dias de maior movimento, aos finais de semana, os pacientes chegam às centenas. No enorme terreno de terra batida onde está inserido o templo e demais construções do Olinda do Amanhecer, pessoas com vestimentas pouco usuais caminham. Os homens, chamados de jaguares, vestem uma espécie de colete sobre blusa preta ou branca, e uma faixa roxa (cura) e amarela (conhecimento), além de sua identificação. Nas ninfas, como são chamadas as mulheres, as vestimentas são as mais variadas. Vestidos vermelhos, azuis, amarelos, todos decorados com bijuterias e babados. Algumas pessoas trajam capas e os que foram iniciados recentemente, batas brancas com poucos detalhes em cores. “As vestes têm por objetivo tirar as diferenças de fora. Todos são iguais. As diferenças sociais são despidas, ficando evidente apenas a atuação na doutrina”, explica Zilcio Sales, presidente do templo, ressaltando que as pequenas diferenças nas roupas são a identificação do patamar em que o médium está - espécie de patente.
Todos se encaminham ao templo revestido por pedras, onde uma médium, de mãos fechadas, incorpora um espírito sofredor. Atrás, um doutrinador auxilia no encaminhamento dele à luz. Os punhos cerrados ganham a companhia do choro e da expressão de esforço. Seu trabalho naquele momento é lidar com os espíritos desencarnados e amenizar seu sofrimento. Na mesma mesa triangular, outros nove médiuns executam a mesma tarefa. “Nossos médiuns são treinados a controlar o que recebem. A incorporação realizada é consciente. Se um espírito chega e começa a xingar, chutar tudo, os pacientes ficariam assustados”, aponta Zilcio.
No templo, os pacientes fazem longas fileiras, sentados em bancos de cimento pintados com cores vivas. Amarelo, vermelho, verde, azul, roxo misturam-se numa espécie de labirinto, característica comum à maioria dos locais de trabalho da doutrina. Nas paredes do salão principal e em suas salas, as cores da parede se somam às diversas imagens de entidades, como caboclos, faraós, ciganas, além da fundadora, Neiva Chaves Zelaya, a Tia Neiva.
Criada em 1959, ainda em Goiás, na área que seria Brasília, a doutrina tem como base a viúva, caminhoneira, mãe de quatro filhos e falecida em 1985. Ela teria descoberto, a contragosto, ter a capacidade de comunicar-se com espíritos, podendo, inclusive, sair do próprio corpo e vivenciar outras dimensões. Na crença do Vale do Amanhecer, ela foi escolhida por Pai Seta Branca, espírito mentor da doutrina, para aplicar todos os ensinamentos existentes hoje, tornando-se mãe clarividente e mentora espiritual dos atuais praticantes da vertente religiosa.
O Vale do Amanhecer mistura entre suas crenças elementos de diversas matrizes, como a africana, de onde vem espíritos de luz como pretos velhos e caboclos, e as referências a orixás como Iemanjá, apesar de negar qualquer associação com a umbanda ou o candomblé. Da chamada corrente indiana do espaço, vem a ligação aos antigos mestres tibetanos. E ainda há influências egípcias, gregas, além de crenças que chegam até a vida extraterrestre. A mistura converge em um princípio simples: o uso da mediunidade em socorro ao próximo.
“O evangelho do Vale prega amor, tolerância e humildade, acreditando na evolução espiritual pela reencarnação. Os seus rituais, coloridos e elaborados, consistem no auxílio gratuito dos médiuns e seus espíritos evoluídos aos pacientes em busca de equilíbrio e cura. Percebe-se, então, que essa religiosidade contém elementos de várias outras religiões: além do cristianismo, kardecismo, umbanda e candomblé, esoterismo e ‘nova era’”, aponta o doutor em teologia e professor da Universidade Católica de Pernambuco Gilbraz Aragão.
Os membros do Vale, porém, apesar de reconhecerem as semelhanças, tratam a doutrina como algo que segue o seu próprio caminho. “Apesar de semelhanças, não somos kardecistas, nem de umbanda, o que nos une é a ciência que originou todas as religiões”, resume Zilcio Sales, adjunto parlo em Olinda e filho de Zilda e Inácio Sales, matriarca e patriarca da doutrina em Pernambuco.
Trabalhos realizados no templo
Tronos
O médium senta-se com um preto velho incorporado, com doutrinador atrás. O paciente conta ao preto velho o problema. O espírito de luz aconselha, consola e afasta espíritos sofredores e correntes negativas que estavam com o paciente.
Cura
Etapa voltada para a cura física do paciente.
Indução
Para afastar correntes negativas de inveja e ciúme
Junção
Se libertar dos espíritos chamados elítios. Espíritos cobradores que já perderam
a forma humana
Linha de passe
O paciente recebe o passe final de médiuns incorporados com caboclos, que transmitem energias das matas e das cachoeiras.
Oráculo
Pai Seta Branca incorpora, sem dar mensagens, mas manipulando energia
em favor dos médiuns.
Cruz do Caminho
Trabalho ligado ao Egito e Grécia, direcionado ao médium, para que ele possa receber energia e ajudar os outros. No trabalho, incorpora Mãe Iemanjá.
Uma aposta espiritual para combater a depressão
Selma Machado tinha 31 anos quando perdeu seu único irmão. Até completar 42, conviveu com a depressão. Resistiu o quanto pôde até entender que o que sentia seria fruto de mediunidade. “Eu vivia com pensamentos compulsivos. A mediunidade quando atua é uma doença muito séria. Se eu não estivesse aqui, há uma grande chance de eu estar em um manicômio”, afirma esbanjando certeza. Talvez motivada pelas experiências que teve desde a infância. Com sete anos, garante ter visto por várias vezes o espírito de um homem tentando levá-la. Com o tempo, sentia uma enorme negatividade. “Bastava alguém me dizer algo que eu não gostasse e aquilo ficava na minha cabeça, não pensava em outra coisa. Depois eu entendi que não era eu pensando”, lembra.
Na doutrina do Amanhecer, encontrou um caminho. Hoje, aos 62, é mestra da casa, após todos os passos iniciáticos. Passou a conviver de forma pacífica com vultos e presenças que vez por outra vê ou sente. “Aqui, aprendi a controlar a minha mediunidade. Isso é um pedacinho céu, salvou a minha vida".
Para Geiza Ferreira Gomes, o caminho foi semelhante. A depressão não dava trégua. Passava seus dias entre o hábito de costurar e a compulsão do choro, fora de controle. A enfermeira do Hospital da Restauração é, junto ao marido, responsável pelo templo da doutrina em Itapissuma, no Grande Recife. A mudança ocorreu há nove anos, após conhecer o Vale do Amanhecer. Antes disso, era católica, sequer admitia o espiritismo, menos ainda outras religiões menos difundidas. “Mas aprendi que não são todos que nascem para serem católicos ou evangélicos. E a gente não pode negar quando recebemos um chamado. Deus é ecumênico. Não faz distinção de religião”.
Na doutrina, aprendeu que cada pessoa tem uma transcendência, que acarreta carmas espirituais, assimilados no auxílio ao próximo. “Quando cheguei aqui, só fazia chorar, agora enxergo todas as cores que antes não via. Jesus diz que ‘na casa do meu pai há muitas moradas’ e é verdade. Uns se encontram na igreja, outros no terreiro e outros no Vale”.
O surgimento que permeia a crença
A construção do Vale do Amanhecer, em 1959, acompanha o surgimento de Brasília, um ano depois, quando o Distrito Federal abrangeu a hoje cidade-satélite de Planaltina. No contexto, de acordo com o doutor em teologia e professor da Unicap, Gilbraz Aragão, a doutrina cresce, sobretudo, diante da insatisfação dos migrantes que largaram a família em busca de renda na construção da cidade. Serve como local de aconchego mágico e orientação moral. “O Vale tem relação com as experiências migratórias, sobretudo de nordestinos, que foram trabalhar nos canteiros da futura capital brasileira. Trata-se de uma religião exuberante em cores e toques, em contraste com o cinza empoeirado do avesso da modernidade, que os nossos candangos experimentaram lá naqueles confins. Mas é uma religião moderna, que gosta de se afirmar como ‘doutrina’, à qual pessoas aderem com liberdade, por convicção”.
Aragão aponta também que Brasília foi mais que uma sede. Como religião, a doutrina se inspira no que era idealizado para o local como cidade. “Ela é inclusiva como almejava Brasília, junta os pretos velhos e caboclos dos grotões com a crença moderna na aparição de extraterrestres. É uma síntese da reencarnação oriental com o amor ocidental, do espiritualismo indígena com o espiritismo moderno, do trato com os espíritos mas por corpos cheios de expressão e performance, em cerimônias que ativam todos os sentidos e mais alguns”.
Diante de toda essa complexidade e das peculiaridades que o compõem, o Vale do Amanhecer acaba sendo vítima de preconceito, apesar da queixa maior ser focada nos boatos. “As pessoas às vezes se apegam a uma parte da doutrina que aborda os extraterrestres e tentam nos tornar lunáticos que estão esperando um disco voador”, exemplifica o presidente do Olinda do Amanhecer, Zilcio Sales, apontando que o isolamento dos templos também tem a ver com uma maior liberdade para exercer todos os seus costumes.
Para Gilbraz Aragão, o mais importante é entender que as religiões normalmente se inspiram em outras apesar de contarem com diferenças. Sobretudo, respeitar a diversidade e focar nas experiências de transcendência humana que são comuns entre elas. “Como dizia dom Helder, todos os templos apontam para o céu: se você fica olhando só o templo, perderá o céu estrelado”.
Uma mediunidade que se fez global
Pai Seta Branca aparece nas imagens e estátuas presentes no templo como um caboclo, mas, na crença, em outras vidas já teria sido faraó e até São Francisco de Assis. Os adeptos acreditam em Deus e em Jesus, mas não são cristãos - se dizem “crísticos”. Creem que Cristo foi um homem que deixou exemplos a serem seguidos, mesmo que não seja o salvador. “O mentor não aceita aquele Jesus sangrando na cruz. A humanidade se sensibiliza com o sofrimento. Aqui a gente não se sensibiliza com Jesus sangrando, mas com os exemplos que ele deixou, que é o mais importante”, afirma Zilcio Sales, presidente do Olinda do Amanhecer.
O Vale do Amanhecer foge do convencional. Desde a complexidade de suas crenças, passando pelas vestes e pelos hábitos costumeiros de outras religiões. Não impõe aos seus seguidores dogmas, livros sagrados, documentos escritos, revelações ou profetas. Tenta excluir de seus preceitos qualquer crença imposta por fé e medo. A manutenção dos templos se dá por contribuições dos médiuns - dinheiro ou presentes dos pacientes são rechaçados.
Pacientes estes que, no futuro, podem tornar-se médiuns e ajudar novos pacientes. “Cremos que todos aqui já passamos pelo Egito, Roma, Grécia em outras encarnações. Fomos preparados no passado e temos uma herança transcendental, precisamos nos redimir dos erros cometidos ajudando o próximo”.
No que crê o Vale do Amanhecer
Tia Neiva
Viúva, mãe de quatro filhos e motorista de caminhão, sem religião alguma, Neiva Chaves Zelaya era uma mulher comum. Aos 33 anos, porém, passou a ter diversas experiências paranormais e extrassensoriais para as quais não encontrava explicações. Entrou para o espiritismo, mas, sem resolver seus problemas, se isolou. Conseguiu esclarecer sua situação ao seguir orientações dos espíritos e iniciar a implantação do Vale do Amanhecer.
Além do corpo
Entre as capacidades que chamavam a atenção em Tia Neiva, estava a habilidade de sair do corpo conscientemente, deixando-o em estado de suspensão, como no sono natural. Entre 1959 e 1964, ela "viajava" ao Tibete todo dia para receber instruções do mestre Humahà. Ela seria capaz também de transportar-se para vários planos para receber instruções do Pai Seta Branca.
Além da Terra
No sistema planetário chamado Capela, haveria uma civilização que há milhares de anos interferiria na vida da Terra. De acordo com Tia Neiva, essa civilização atua ajudando os humanos, tendo, por exemplo, construído as pirâmides do Egito. Os capelinos teriam sido vistos por ela em um dos seus "desdobramentos" (quando o espírito saía do corpo físico). Esses seres teriam entre três e quatro metros de altura e a capacidade de vir à Terra encarnar nos médiuns como mentores, fazendo uma parada antes na Lua, onde haveria uma base de desintegração que os deixa em estado etéreo. Há a crença de que um planeta gigantesco se aproximará da Terra e muitos espíritos serão recolhidos por ele. Os eventos que culminarão com isso tiveram início em 1984. Só reencarnaram na Terra espíritos redimidos, sem maldade.
Por dentro do Vale do Amanhecer
Estrela Sublimação
Um dos principais símbolos da doutrina, local com uma grande elipse recebe um trabalho 'iniciático,' que tem o objetivo de desintegrar forças negativas
Estrela Candente
Zilcio Sales apresenta o local, permeado por água, com plataformas para os médiuns, onde é realizado um trabalho três vezes ao dia: 12h30, 14h30 e 18h30. O objetivo é gerar energia para ajudar do município ao país e elevar espíritos que, de tão terríveis, não podem ser incorporados pelos médiuns. O trabalho completo é realizado por 216 pessoas
Turugano
Neste local, repleto de bancos de cimentos que formam desenho semelhante a um labirinto repleto de cores, ocorre um trabalho que traz heranças transcendentais e energias da Grécia, de Esparta e serve para proteger os médiuns do Vale do Amanhecer em seus caminhos. Os pacientes também podem participar e receber energia.
Alabar
Neste setor, pretos velhos incorporam, pacientes passam, dizem seus problemas e recebem uma rápida mensagem e o passe dos espíritos de luz. O trabalho é realizado por sete dias consecutivos quando a lua está cheia e tem o objetivo de trazer a cura através da manipulação da energia lunar
Números
A área éisolada, mas nos dias de maior movimento, aos finais de semana, os pacientes chegam às centenas. No enorme terreno de terra batida onde está inserido o templo e demais construções do Olinda do Amanhecer, pessoas com vestimentas pouco usuais caminham. Os homens, chamados de jaguares, vestem uma espécie de colete sobre blusa preta ou branca, e uma faixa roxa (cura) e amarela (conhecimento), além de sua identificação. Nas ninfas, como são chamadas as mulheres, as vestimentas são as mais variadas. Vestidos vermelhos, azuis, amarelos, todos decorados com bijuterias e babados. Algumas pessoas trajam capas e os que foram iniciados recentemente, batas brancas com poucos detalhes em cores. “As vestes têm por objetivo tirar as diferenças de fora. Todos são iguais. As diferenças sociais são despidas, ficando evidente apenas a atuação na doutrina”, explica Zilcio Sales, presidente do templo, ressaltando que as pequenas diferenças nas roupas são a identificação do patamar em que o médium está - espécie de patente.
Todos se encaminham ao templo revestido por pedras, onde uma médium, de mãos fechadas, incorpora um espírito sofredor. Atrás, um doutrinador auxilia no encaminhamento dele à luz. Os punhos cerrados ganham a companhia do choro e da expressão de esforço. Seu trabalho naquele momento é lidar com os espíritos desencarnados e amenizar seu sofrimento. Na mesma mesa triangular, outros nove médiuns executam a mesma tarefa. “Nossos médiuns são treinados a controlar o que recebem. A incorporação realizada é consciente. Se um espírito chega e começa a xingar, chutar tudo, os pacientes ficariam assustados”, aponta Zilcio.
No templo, os pacientes fazem longas fileiras, sentados em bancos de cimento pintados com cores vivas. Amarelo, vermelho, verde, azul, roxo misturam-se numa espécie de labirinto, característica comum à maioria dos locais de trabalho da doutrina. Nas paredes do salão principal e em suas salas, as cores da parede se somam às diversas imagens de entidades, como caboclos, faraós, ciganas, além da fundadora, Neiva Chaves Zelaya, a Tia Neiva.
Criada em 1959, ainda em Goiás, na área que seria Brasília, a doutrina tem como base a viúva, caminhoneira, mãe de quatro filhos e falecida em 1985. Ela teria descoberto, a contragosto, ter a capacidade de comunicar-se com espíritos, podendo, inclusive, sair do próprio corpo e vivenciar outras dimensões. Na crença do Vale do Amanhecer, ela foi escolhida por Pai Seta Branca, espírito mentor da doutrina, para aplicar todos os ensinamentos existentes hoje, tornando-se mãe clarividente e mentora espiritual dos atuais praticantes da vertente religiosa.
O Vale do Amanhecer mistura entre suas crenças elementos de diversas matrizes, como a africana, de onde vem espíritos de luz como pretos velhos e caboclos, e as referências a orixás como Iemanjá, apesar de negar qualquer associação com a umbanda ou o candomblé. Da chamada corrente indiana do espaço, vem a ligação aos antigos mestres tibetanos. E ainda há influências egípcias, gregas, além de crenças que chegam até a vida extraterrestre. A mistura converge em um princípio simples: o uso da mediunidade em socorro ao próximo.
“O evangelho do Vale prega amor, tolerância e humildade, acreditando na evolução espiritual pela reencarnação. Os seus rituais, coloridos e elaborados, consistem no auxílio gratuito dos médiuns e seus espíritos evoluídos aos pacientes em busca de equilíbrio e cura. Percebe-se, então, que essa religiosidade contém elementos de várias outras religiões: além do cristianismo, kardecismo, umbanda e candomblé, esoterismo e ‘nova era’”, aponta o doutor em teologia e professor da Universidade Católica de Pernambuco Gilbraz Aragão.
Os membros do Vale, porém, apesar de reconhecerem as semelhanças, tratam a doutrina como algo que segue o seu próprio caminho. “Apesar de semelhanças, não somos kardecistas, nem de umbanda, o que nos une é a ciência que originou todas as religiões”, resume Zilcio Sales, adjunto parlo em Olinda e filho de Zilda e Inácio Sales, matriarca e patriarca da doutrina em Pernambuco.
Trabalhos realizados no templo
Tronos
O médium senta-se com um preto velho incorporado, com doutrinador atrás. O paciente conta ao preto velho o problema. O espírito de luz aconselha, consola e afasta espíritos sofredores e correntes negativas que estavam com o paciente.
Cura
Etapa voltada para a cura física do paciente.
Indução
Para afastar correntes negativas de inveja e ciúme
Junção
Se libertar dos espíritos chamados elítios. Espíritos cobradores que já perderam
a forma humana
Linha de passe
O paciente recebe o passe final de médiuns incorporados com caboclos, que transmitem energias das matas e das cachoeiras.
Oráculo
Pai Seta Branca incorpora, sem dar mensagens, mas manipulando energia
em favor dos médiuns.
Cruz do Caminho
Trabalho ligado ao Egito e Grécia, direcionado ao médium, para que ele possa receber energia e ajudar os outros. No trabalho, incorpora Mãe Iemanjá.
Uma aposta espiritual para combater a depressão
Selma Machado tinha 31 anos quando perdeu seu único irmão. Até completar 42, conviveu com a depressão. Resistiu o quanto pôde até entender que o que sentia seria fruto de mediunidade. “Eu vivia com pensamentos compulsivos. A mediunidade quando atua é uma doença muito séria. Se eu não estivesse aqui, há uma grande chance de eu estar em um manicômio”, afirma esbanjando certeza. Talvez motivada pelas experiências que teve desde a infância. Com sete anos, garante ter visto por várias vezes o espírito de um homem tentando levá-la. Com o tempo, sentia uma enorme negatividade. “Bastava alguém me dizer algo que eu não gostasse e aquilo ficava na minha cabeça, não pensava em outra coisa. Depois eu entendi que não era eu pensando”, lembra.
Na doutrina do Amanhecer, encontrou um caminho. Hoje, aos 62, é mestra da casa, após todos os passos iniciáticos. Passou a conviver de forma pacífica com vultos e presenças que vez por outra vê ou sente. “Aqui, aprendi a controlar a minha mediunidade. Isso é um pedacinho céu, salvou a minha vida".
Para Geiza Ferreira Gomes, o caminho foi semelhante. A depressão não dava trégua. Passava seus dias entre o hábito de costurar e a compulsão do choro, fora de controle. A enfermeira do Hospital da Restauração é, junto ao marido, responsável pelo templo da doutrina em Itapissuma, no Grande Recife. A mudança ocorreu há nove anos, após conhecer o Vale do Amanhecer. Antes disso, era católica, sequer admitia o espiritismo, menos ainda outras religiões menos difundidas. “Mas aprendi que não são todos que nascem para serem católicos ou evangélicos. E a gente não pode negar quando recebemos um chamado. Deus é ecumênico. Não faz distinção de religião”.
Na doutrina, aprendeu que cada pessoa tem uma transcendência, que acarreta carmas espirituais, assimilados no auxílio ao próximo. “Quando cheguei aqui, só fazia chorar, agora enxergo todas as cores que antes não via. Jesus diz que ‘na casa do meu pai há muitas moradas’ e é verdade. Uns se encontram na igreja, outros no terreiro e outros no Vale”.
O surgimento que permeia a crença
A construção do Vale do Amanhecer, em 1959, acompanha o surgimento de Brasília, um ano depois, quando o Distrito Federal abrangeu a hoje cidade-satélite de Planaltina. No contexto, de acordo com o doutor em teologia e professor da Unicap, Gilbraz Aragão, a doutrina cresce, sobretudo, diante da insatisfação dos migrantes que largaram a família em busca de renda na construção da cidade. Serve como local de aconchego mágico e orientação moral. “O Vale tem relação com as experiências migratórias, sobretudo de nordestinos, que foram trabalhar nos canteiros da futura capital brasileira. Trata-se de uma religião exuberante em cores e toques, em contraste com o cinza empoeirado do avesso da modernidade, que os nossos candangos experimentaram lá naqueles confins. Mas é uma religião moderna, que gosta de se afirmar como ‘doutrina’, à qual pessoas aderem com liberdade, por convicção”.
Aragão aponta também que Brasília foi mais que uma sede. Como religião, a doutrina se inspira no que era idealizado para o local como cidade. “Ela é inclusiva como almejava Brasília, junta os pretos velhos e caboclos dos grotões com a crença moderna na aparição de extraterrestres. É uma síntese da reencarnação oriental com o amor ocidental, do espiritualismo indígena com o espiritismo moderno, do trato com os espíritos mas por corpos cheios de expressão e performance, em cerimônias que ativam todos os sentidos e mais alguns”.
Diante de toda essa complexidade e das peculiaridades que o compõem, o Vale do Amanhecer acaba sendo vítima de preconceito, apesar da queixa maior ser focada nos boatos. “As pessoas às vezes se apegam a uma parte da doutrina que aborda os extraterrestres e tentam nos tornar lunáticos que estão esperando um disco voador”, exemplifica o presidente do Olinda do Amanhecer, Zilcio Sales, apontando que o isolamento dos templos também tem a ver com uma maior liberdade para exercer todos os seus costumes.
Para Gilbraz Aragão, o mais importante é entender que as religiões normalmente se inspiram em outras apesar de contarem com diferenças. Sobretudo, respeitar a diversidade e focar nas experiências de transcendência humana que são comuns entre elas. “Como dizia dom Helder, todos os templos apontam para o céu: se você fica olhando só o templo, perderá o céu estrelado”.
Uma mediunidade que se fez global
Pai Seta Branca aparece nas imagens e estátuas presentes no templo como um caboclo, mas, na crença, em outras vidas já teria sido faraó e até São Francisco de Assis. Os adeptos acreditam em Deus e em Jesus, mas não são cristãos - se dizem “crísticos”. Creem que Cristo foi um homem que deixou exemplos a serem seguidos, mesmo que não seja o salvador. “O mentor não aceita aquele Jesus sangrando na cruz. A humanidade se sensibiliza com o sofrimento. Aqui a gente não se sensibiliza com Jesus sangrando, mas com os exemplos que ele deixou, que é o mais importante”, afirma Zilcio Sales, presidente do Olinda do Amanhecer.
O Vale do Amanhecer foge do convencional. Desde a complexidade de suas crenças, passando pelas vestes e pelos hábitos costumeiros de outras religiões. Não impõe aos seus seguidores dogmas, livros sagrados, documentos escritos, revelações ou profetas. Tenta excluir de seus preceitos qualquer crença imposta por fé e medo. A manutenção dos templos se dá por contribuições dos médiuns - dinheiro ou presentes dos pacientes são rechaçados.
Pacientes estes que, no futuro, podem tornar-se médiuns e ajudar novos pacientes. “Cremos que todos aqui já passamos pelo Egito, Roma, Grécia em outras encarnações. Fomos preparados no passado e temos uma herança transcendental, precisamos nos redimir dos erros cometidos ajudando o próximo”.
No que crê o Vale do Amanhecer
Tia Neiva
Viúva, mãe de quatro filhos e motorista de caminhão, sem religião alguma, Neiva Chaves Zelaya era uma mulher comum. Aos 33 anos, porém, passou a ter diversas experiências paranormais e extrassensoriais para as quais não encontrava explicações. Entrou para o espiritismo, mas, sem resolver seus problemas, se isolou. Conseguiu esclarecer sua situação ao seguir orientações dos espíritos e iniciar a implantação do Vale do Amanhecer.
Além do corpo
Entre as capacidades que chamavam a atenção em Tia Neiva, estava a habilidade de sair do corpo conscientemente, deixando-o em estado de suspensão, como no sono natural. Entre 1959 e 1964, ela "viajava" ao Tibete todo dia para receber instruções do mestre Humahà. Ela seria capaz também de transportar-se para vários planos para receber instruções do Pai Seta Branca.
Além da Terra
No sistema planetário chamado Capela, haveria uma civilização que há milhares de anos interferiria na vida da Terra. De acordo com Tia Neiva, essa civilização atua ajudando os humanos, tendo, por exemplo, construído as pirâmides do Egito. Os capelinos teriam sido vistos por ela em um dos seus "desdobramentos" (quando o espírito saía do corpo físico). Esses seres teriam entre três e quatro metros de altura e a capacidade de vir à Terra encarnar nos médiuns como mentores, fazendo uma parada antes na Lua, onde haveria uma base de desintegração que os deixa em estado etéreo. Há a crença de que um planeta gigantesco se aproximará da Terra e muitos espíritos serão recolhidos por ele. Os eventos que culminarão com isso tiveram início em 1984. Só reencarnaram na Terra espíritos redimidos, sem maldade.
Por dentro do Vale do Amanhecer
Estrela Sublimação
Um dos principais símbolos da doutrina, local com uma grande elipse recebe um trabalho 'iniciático,' que tem o objetivo de desintegrar forças negativas
Estrela Candente
Zilcio Sales apresenta o local, permeado por água, com plataformas para os médiuns, onde é realizado um trabalho três vezes ao dia: 12h30, 14h30 e 18h30. O objetivo é gerar energia para ajudar do município ao país e elevar espíritos que, de tão terríveis, não podem ser incorporados pelos médiuns. O trabalho completo é realizado por 216 pessoas
Turugano
Neste local, repleto de bancos de cimentos que formam desenho semelhante a um labirinto repleto de cores, ocorre um trabalho que traz heranças transcendentais e energias da Grécia, de Esparta e serve para proteger os médiuns do Vale do Amanhecer em seus caminhos. Os pacientes também podem participar e receber energia.
Alabar
Neste setor, pretos velhos incorporam, pacientes passam, dizem seus problemas e recebem uma rápida mensagem e o passe dos espíritos de luz. O trabalho é realizado por sete dias consecutivos quando a lua está cheia e tem o objetivo de trazer a cura através da manipulação da energia lunar
Números
- 677 templos espalhados pelo Brasil
- 47 templos estão sediados em Pernambuco
- 1975 foi o ano da inauguração da religião no estado, em Olinda
- 10 mil médiuns já teriam passado pelo local desde sua fundação
- 20 falanges missionárias fazem parte da doutrina, cada uma regida por uma entidade