Pretos e pobres na mira da ação policial Moradores classificam intervenção da polícia sem preparo e racista e nem sempre se sentem seguros nas abordagens

Publicação: 29/06/2019 03:00

“Vó, me dá a identidade. Lá vem os homi”, lança o garoto de dez anos para a avó materna. Na favela, as crianças aprendem desde cedo como se dá a abordagem da Polícia Militar (PM). De tanto assistirem, repetem os atos e falas dos adultos. Joelma, a avó de 58 anos, também cria uma neta com 11 anos dentro de uma favela no bairro de Peixinhos, em Olinda. Ela tem medo das crianças brincando do lado de fora da casa. Às vezes, conta, “vem o carro alvoroçado com os PMs esculhambando a gente.” Nos dias de tiroteio, Joelma fecha as grades e vai para o quarto de trás. “Não abro mais a porta. Tenho medo de bala perdida. Bala perdida não tem endereço.”

Luzia, 56, mora na mesma favela. Não deixa o neto de 4 anos brincar na rua. Prefere o menino dentro de casa, na frente da TV ou do celular. “Os homi quando descem (entram na rua) esculhambam. Não tiro a razão deles. Tem mãe que deixa os meninos na rua na hora da bala ao invés de botar eles pra dentro de casa.” Certa vez, um policial perguntou ao neto de Luzia como é que a polícia faz com bandido. O menino repetiu o gesto dos adultos: botou a mão na cabeça e abriu as pernas.

A intervenção policial nas favelas é considerada pelos moradores sem preparo e racista. A sensação é de insegurança e impunidade. Raquel Ayres, 25, é jovem multiplicadora do projeto Mães da Saudade, do grupo Comunidade Assumindo suas Crianças, que atende 55 mães cujos filhos foram vítimas da violência letal. “O jovem preto já é construído pelo estado como alguém suspeito e essa visão é mortífera nas comunidades. Por isso digo que a bala é achada e não perdida.”

Por outro lado, a relação dos moradores com os traficantes, em geral, não é de medo. “Eles são crianças que cresceram comigo. Quando o tráfico atinge alguém da comunidade, geralmente é acidental, sem intenção. No caso da polícia, a gente sabe que o estado constrói nossa pessoa como suspeita possível de ser morta. O estado tem culpa quando joga nas ruas um policial desqualificado e sem assistência com poder de fogo. Se a corregedoria funcionasse e o estado assumisse a culpa, seria um bom começo”, ressalta.

Raquel convive com os disparos todos os dias porque mora no meio de uma zona de confronto entre facções rivais. “Os traficantes pulam o muro para fugir e a PM entra no meu quintal atrás deles. Fecho as portas. É preciso ficar atrás do máximo de paredes entre você e o tiro, deitada no chão. Mas já teve dia do tiro cair no telhado da minha vizinha.”

Lídia Lins, estudante de direito e integrante do Coletivo Ibura mais cultura, diz que, apesar da comunidade conhecer os envolvidos com o tráfico desde quando eles eram crianças, não significa dizer que apoia a criminalidade na região. Os moradores sabem, diz ela, o quanto o movimento de venda de drogas pode respingar nos próprios filhos. “Estamos falando de um vizinho que nossos pais conhecem, que brincou junto com a gente, estudou na mesma escola. São pessoas que temos relação de afeto. Claro que o movimento natural é de separação. Embora esteja dentro da comunidade, há reprovação social daquilo. O problema é que se tem boca de fumo, vai ter repressão policial na área. Então os pais ficam preocupados. O filho não tem nada a ver com o tráfico, mas é negro, periférico, tatuado. Também não querem ver a geração mais nova sendo recrutada. Então, tem a reprovação, mas tem a relação de conviver com aquilo.”

Sofia, moradora do Ibura, diz que não se sente protegida pela polícia. “No começo eles invadiam muitos barracos. A PM invadiu minha casa com meu irmão doente. Perguntavam com quem eu morava, se meu marido foi preso - e eu nem tenho marido -, o que era o material de meu irmão, que é técnico de computação. Não vou generalizar, mas o pior é enfrentar o interrogatório da polícia. Mexe muito com o psicológico da gente.” A mãe de Sofia, Margarida, 48, também não se sente segura com a presença da polícia no bairro. Para ela, o motivo é outro: “Os bandidos estão muito mais bem armados que a polícia.”
 
Compromisso com a vida
O Instituto Sou da Paz surgiu há vinte anos, em São Paulo, a partir de uma mobilização de estudantes que cobravam do governo a redução da violência. Os integrantes lideraram campanhas contra a flexibilização do uso de armas de fogo e de entrega de armas. Hoje, atuam com adolescentes que cometeram atos infracionais na tentativa de reduzir o ciclo criminal e dar aos jovens outro caminho. O instituto também capacita policiais para que façam uma melhor abordagem nas ruas.

“A gente precisa pensar o impacto da atuação da polícia nas favelas. Observar a escolha de horários das operações. Muitas vezes, deixar o criminoso fugir é preferível a colocar a população civil na linha do tiro. O traficante não tem compromisso,  mas agentes do estado precisam ter. O bem mais caro é o compromisso com a vida”, destacou Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz.

Segundo Bruno, no Rio de Janeiro há uma discussão no Ministério Público sobre adequação dos horários de operações. “É preciso considerar se a ação está perto de escola, por exemplo. Porque tem o risco de colocar a criança na linha do tiro e gerar o cancelamento das aulas.”