Sob fogo cruzado Como os tiroteios impactam o cotidiano dos moradores de favelas e negam direitos

texto: Marcionila Teixeira
marcionila.teixeira@diariodepernambuco.com.br
fotos: Peu Ricardo

Publicação: 29/06/2019 03:00

A favela estava sob toque de recolher quando o caminhão entrou sem levantar suspeitas. Sofia, 20 anos, e sua família deixavam a habitação de tábuas para seguir em direção à casa da avó, um imóvel de tijolos. Nos dias de tiroteio, alvenaria protege mais que madeira. Na rua vazia, família e caminhão se cruzam. Repentinamente, homens armados saltam do veículo. O pavor trava as pernas diante das ordens de “não corra”. A família somente volta a se movimentar após a passagem dos traficantes. Se abrigou em uma casa da vizinhança, de onde somente saiu à noite. A cena aconteceu há um ano. Além dos moradores da favela, poucos souberam do episódio. A imprensa não cobriu o caso. A invisibilidade faz morada no Ibura, na Zona Sul do Recife.

Conversamos com Sofia e um dos irmãos, Hiago, 12, em uma praça do bairro. Ela nos contou como é viver fugindo dos tiroteios. Eles acontecem entre traficantes rivais e entre traficantes e polícia. A migração da família para a casa da avó tornou-se rotina. A violência narrada na cena do caminhão impediu a jovem de frequentar um curso de auxiliar de administração ofertado pela prefeitura. “Tive uma crise de pânico e o curso também terminou cancelado. Ficava na entrada de uma região de conflito. É muito tenso. Estou em um lugar que sei que não tem segurança. Moro em um barraco de tábua na invasão. Só Jesus para proteger.” A vida em meio ao fogo cruzado também adoece Hiago. “Ele tem febre emocional. Fica nervoso”, conta a jovem. O menino diz gostar do Ibura. Perto da casa dele tem uma praça para andar de skate e jogar bola. Mas nos dias violentos, ele não brinca e também não tem aula.

O Laboratório de Dados sobre Violência Armada Fogo Cruzado coleta dados via usuários e imprensa desde abril do ano passado. Contabilizou 210 episódios de tiroteios/disparos em 58 bairros do Recife de janeiro a maio deste ano. O Ibura está em terceiro lugar no ranking, com 11 registros.  Os números são ainda maiores, dizem os moradores. A Secretaria de Defesa Social (SDS) não contabiliza tiroteios, sob a justificativa de não se tratar de um tipo penal.

“O aplicativo monitora a dinâmica dos disparos. Se ocorreu e não machucou alguém, aquilo também está falando de insegurança. E isso tem a ver com a região que recebe menos política pública. O tiro pode não matar, mas tira o direito de ir e vir, de estudar, de brincar”, considera Gidália Santana, do Fogo Cruzado.

Na favela onde Fabíola, 26, vive com a filha de dois anos, em Peixinhos, Olinda, tem tiroteio pelo menos uma vez por semana. Nessas horas, Fabíola se tranca em casa e não volta a sair porque os disparos podem recomeçar. “É desesperador. A gente não sabe onde colocar a criança. Tranco as portas e fico sentada no chão, perto da cama, encostada na parede. Minha filha não entende o que acontece.” Fabíola também deixa de sair à noite por medo da voltar mais tarde. “Os tiros acabam com minha liberdade.”

Em 21 bairros de Olinda conectados ao Fogo Cruzado, foram registrados, de janeiro a maio, 52 episódios de disparos. Caixa D’Água está em primeiro lugar, com 10 casos, seguido por Peixinhos, com cinco.