REINVENÇÕES SUSTENTÁVEIS » BioCidade multiconectada

por Sérgio Xavier
Sérgio Xavier é jornalista, ecologista, desenvolvedor de inovações com tecnologias digitais (Plataforma Circularis) e foi Secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco.
sergio@xavier.inf.br

Publicação: 19/10/2019 03:00

Se a vida é o centro dos valores humanos, as cidades, que concentram a maior parte da humanidade, deveriam ser centros de vida. Mas o modelo de crescimento da economia e das cidades não é biocêntrico. Ao contrário, a vida nas grandes cidades está sempre ameaçada. Além da biodiversidade (plantas e animais), destruída com obras e impactos urbanos, a própria vida humana é banalizada por desigualdades extremas, violências, acidentes de trânsito, doenças provocadas por vários tipos de poluição e pelo estresse das rotinas agoniadas e insalubres.  Nas cidades, até as habitações, que deveriam ser lugar de segurança, conforto e felicidade, são pontos de riscos fatais, com frequentes desabamentos de construções inadequadas.  

Para uma cidade se tornar um sistema vivo e sustentável precisa sincronizar seus processos de produção, mobilidade, consumo, descarte e, sobretudo, satisfação humana, ao uso de energias renováveis, à proteção da biodiversidade e aos ciclos biogeoquímicos naturais - de água, carbono, oxigênio, nitrogênio etc.

Seguir a natureza
Realizar construções ou estruturar atividades econômicas em conflito com florestas, rios, oceanos, ciclos ambientais e clima é andar na contramão da natureza e o destino final será o colapso. A fracassada ideia de “dominar a natureza” a qualquer custo precisa ser urgentemente substituída pela ideia de se integrar e agir em plena sintonia com as forças naturais.

Nesta mudança de paradigmas, ressaltam-se três desafios: (I) Perceber a cidade como organismo vivo - um conceito óbvio, mas pouco compreendido e praticado por governos, empresas e cidadãos. (II) Interconectar múltiplos processos individuais, sociais, econômicos e ambientais em redes inclusivas e ecoeficientes, com a máxima simplicidade (ter simples cidades). (III) Definir passos objetivos para fazer a transição de cidade mecânica-linear para BioCidade Circular.

ArtePercepções
Evoluções e transformações são disparadas por mudanças de percepção e visões sistêmicas, que só são obtidas com provocações e olhares fora da mesmice. Nisso, a arte é essencial. A sensibilidade crítica para reinvenções e a capacidade criativa de uma cidade são diretamente proporcionais à intensidade da produção e absorção artística do seu povo.

Arte é comunicação holística. Sintetiza sentimentos, conhecimentos, inventividade, visão crítica, e desperta os impulsos transformadores que movem o mundo. O acesso a novas expressões artísticas e culturais amplia o universo mental e faz evoluir indivíduos e civilizações. Por isso a diversidade cultural humana é tão importante quanto a biodiversidade da Terra. É a nossa forma de viver e de interagir com a natureza (cultura) que define a possibilidade de conservar ou destruir ecossistemas (sustentabilidade).

Redes vivas
No ambiente natural, as informações exatas (DNA), as conexões moleculares e as ligações biogeoquímicas compõem os fluxos entrelaçados que sustentam a vida. Logo, para os processos humanos se tornarem ecoeficientes e regeneradores dos ecossistemas urbanos, precisam de conhecimento circulando em redes inteligentes, multiconectadas, possibilitando interações sistêmicas.     

Redes digitais integradas e transparentes formam o sistema circulatório de uma cidade viva, difundindo informações corretas; simplificando e harmonizando fluxos de pessoas, produtos, resíduos e elementos naturais; replanejando e regenerando espaços; garantindo a diversidade de direitos (atuais e futuros, dos humanos e de todas as espécies) e equalizando o crescimento populacional, com soluções de compartilhamento, inclusão e acessibilidade.

Política circular
As cidades são desenhadas pelo modelo econômico em vigor. São poluídas porque a economia dominante é poluída. São desiguais e excludentes porque a economia tradicional sempre foi assim. Logo, para fazer acontecer transformações urbanas ecológicas e agregadoras, são necessárias políticas públicas interconectadas, impulsionando os modelos disruptivos de negócios da bioeconomia circular. Mudanças nos processos econômicos geram mudanças no pensamento social e influenciam o sistema político que planeja o futuro.

Simplificar  
Parece complexo, mas pode ser simples fazer acontecer esse novo modelo de economia e de cidade. Para implementar um biodesenvolvimento econômico baseado nos ciclos naturais e no combate a desperdícios e poluições, existem 9 cadeias produtivas fundamentais que, se receberem incentivos integrados, podem abrir infinitas oportunidades e catalisar o florescimento de cidades sustentáveis:

(1) Energias Renováveis; (2) Mobilidade Elétrica e híbrida (usando biocombustíveis); (3) Reciclagem e Recuperação de matérias-primas (Indústria Reversa e BioIndústrias); (4) Conservação de Água (proteção ambiental e sistemas de reuso); (5) Design, BioArquitetura e Urbanismo Verde (Retrofit e construções ecointegradas); (6) Educação Ambiental e Profissionalização para a Sustentabilidade; (7) Gestão Sistêmica com Tecnologias Digitais (Internet das Coisas e Inteligência Artificial para gerenciar processos complexos interligados, como encadeamento industrial 4.0, serviços públicos etc); (8) Solo, Agroecologia e Alimentação (florestas e hortas urbanas) e (9) Pagamentos por Serviços Ambientais e captura de Carbono (saindo do paradigma poluidor-pagador para o protetor-recebedor).

SocioBioDiversidade  
Desenvolver BioCidades ou CicloCidades BioConectadas exige muito conhecimento, parcerias, financiamento, políticas criativas e inovação. Considerando que as tecnologias e as redes digitais são bases do modelo, Recife, com o Porto Digital, tem imenso potencial para liderar essa reinvenção. A ilha do Recife Antigo pode ser um estratégico laboratório vivo: tem rio, mar, empresas, problemas socioambientais, presença ativa dos governos municipal e estadual e interliga ampla pluralidade de expressões artísticas e culturais, sobretudo no Carnaval. Forma uma inspiradora sociobiodiversidade que combina tradição e invenção, identidade e mestiçagem.

PlacaMãe.Org
Aprofundarei este tema na obra coletiva Direito, Tecnologia e Sociedade, que será lançada em breve, composta por 5 tomos: (I) As tecnologias digitais e as relações pessoais; (II) Novas tecnologias, nova educação? (III) Tecnologias digitais e cotidiano urbano; (IV) As tecnologias digitais e a nova economia; (V) Tecnologia e arte. A edição é coorganizada pela pesquisadora Paloma Mendes Saldanha (Doutoranda em Direito – Inteligência Artificial - Unicap), o Doutor em Direito - UFPE Alexandre Saldanha e a Mestre em Direito - Unicap Aline Taraziuk Nicodemos. O novo livro é uma iniciativa do projeto PlacaMãe.Org, que visa “entender as influências da tecnologia”.