Gripe espanhola, lição a ser aprendida Há 102 anos, um vírus dizimou parte da população mundial com 50 milhões de mortos, sendo 35 mil no Brasil. Uma nova pandemia volta a assustar o mundo

Anamaria Nascimento
anamaria.nascimento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 04/04/2020 03:00

Em 60 dias, uma pandemia conseguiu deixar um rastro de 35 mil mortes no Brasil. Caixões eram empilhados nos cemitérios por falta de coveiros. Escolas estavam sem aulas. O comércio estava fechado. As ruas, vazias. Os espaços não foram esvaziados por orientação das autoridades sanitárias, como tem acontecido durante a pandemia do novo coronavírus. Não havia pessoas nesses lugares porque elas estavam doentes ou mortas. Apenas no Recife, na época com 238 mil habitantes, 1.250 óbitos foram registrados, ou seja, 0,5% da população morreu em menos de dois meses. O ano era 1918, e o mundo enfrentava a gripe espanhola, até hoje considerada por infectologistas “o maior holocausto médico da história”. O episódio deixou marcas pelo horror, mas também ficaram lições que podem ser aprendidas mais de um século depois.

Historiadores apontam que a epidemia da gripe espanhola – que, apesar do nome, não surgiu na Espanha, mas em um acampamento militar no Kansas, Estados Unidos – chegou ao Brasil pelo Porto de Recife, a bordo do navio português Demerara, em setembro de 1918, “ao que tudo indica vinda de Dakar, trazida por marinheiros brasileiros que prestaram serviço militar na região”, de acordo com os virologistas Hermann Schatzmayr e Maulori Cabral, no livro A virologia no estado do Rio de Janeiro. À medida que os casos aumentavam em número e gravidade, o pânico começou a tomar conta das cidades, que se tornaram cidades-fantasma, com os serviços parando. “Restaram os serviços públicos da área da saúde, totalmente caóticos e sem condições de prestar auxílio aos que os procuravam, pois sequer a etiologia real da epidemia era conhecida”, relatam Schatzmayr e Cabral.

O pesquisador José Cássio de Moraes, integrante da Comissão de Epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, lembra que a gripe espanhola surgiu no contexto da Primeira Guerra Mundial. “Em março de 1918, há o registro no acampamento militar no Kansas. Em maio, chega ao leste da África. Em agosto, na França. Em setembro, na América do Sul. O espalhamento foi mais lento no mundo (em comparação com a velocidade da Covid-19) porque os meios de transporte não eram os de hoje”, compara.

A historiadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e professora de pós-graduação em história das ciências e da saúde, Dilene do Nascimento, ressalta que existia, nesse período, uma fragilidade social. “Já faltavam alimentos em geral, e as populações estavam mais debilitadas. A gripe espanhola foi causada, como acontece com este novo coronavírus, por um vírus até então desconhecido. A evolução de uma epidemia depende do contexto histórico de cada época”, afirma.

A letalidade e a taxa de infecção nos lugares em que chegava, porém, rapidamente cresciam. “Tanto pela propagação do vírus quanto pela dificuldade do tratamento. Nem se sabia que era o vírus da gripe porque ele ainda não havia sido identificado”, diz José Cássio de Moraes. No mundo, mais de 500 milhões de pessoas foram infectadas. Cerca de 50 milhões de óbitos foram registrados. Desses, 30 milhões foram na China, quando 10% da população foi dizimada pela doença. No Brasil, de acordo com Moraes, foram registradas 35 mil mortes. Não há estatísticas precisas sobre quantos foram infectados no país. “De seis a oito semanas, 0,2% da população brasileira morreu. Na época, São Paulo tinha 579 mil pessoas. Dessas, 176 mil foram infectadas em um mês e meio e 5 mil morreram”, afirma o pesquisador.

Como no atual enfrentamento à pandemia da Covid-19, a gripe espanhola também causou comoção social. Mas não chegou a ser criado um protocolo de isolamento social como está sendo feito agora.  

“As recomendações falavam em evitar aglomerações, principalmente à noite. Hoje, sabemos que qualquer aglomeração, de dia ou à noite, importa. Também havia orientação para não fazer visitar, ter cuidados com a higiene. Era recomendado também fazer gargarejo com água e sal, mas isso está descartado, pois não há nenhuma evidência científica, em relação à eficácia”, pontua Moraes.  

O impacto

Gripe espanhola – 1918-1920


Surgimento: Kansas, Estados Unidos
  • 500 milhões de infectados no mundo
  • 50 milhões de mortos no mundo
  • 30 milhões de mortos na China
  • Entrada no Brasil: Recife
  • 35 mil mortos no Brasil
  • 1.250 mortos no Recife
Covid-19* – 2019-

Surgimento: Wuhan, China
  • 1,9 milhão de infectados no mundo
  • 58 mil mortes no mundo
  • 3,2 mil mortos na China
  • Entrada no Brasil: São Paulo
  • 9.056 infectados no Brasil
  • 359 mortes no Brasil
  • 136 casos confirmados em Pernambuco
  • 10 mortes em Pernambuco
* Dados até as 23h de sexta-feira (3)