"Quando ele voltava de viagem era uma festa" Em entrevista exclusiva, filho mais novo do educador lembra os momentos de intimidade com o pai e os dias da família durante o exílio

Júlia Rodrigues
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Publicação: 18/09/2021 06:10

“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem”. A célebre frase do Patrono da Educação Brasileira reflete os anseios que Paulo Reglus Neves Freire tinha para a construção de uma educação crítica e dialógica entre professores, alunos e sociedade. O legado do pernambucano, que completa 100 anos neste domingo (19),  foi construído nas várias horas de trabalho dedicadas aos livros no Recife e nos 16 anos que passou exilado entre Chile, Estados Unidos e Suíça. Mas, assim como a metodologia freiriana, os feitos do educador e filósofo vão além do ofício. Assim como o método de alfabetização de adultos, Paulo Freire tinha um jeito popular de mostrar que era ser humano. Era torcedor do Santa Cruz e tinha galinha cabidela como prato favorito. Em entrevista, o filho caçula do educador, Lutgardes Costa Freire, sociólogo do Instituto Paulo Freire, relembrou a trajetória do pai e seus feitos para o país, mesmo diante dos ataques que seu legado recebem.

Entrevista // Lutgardes Freire, sociólogo

Como você descreve o Paulo Freire do dia a dia e o que vocês costumavam fazer juntos em casa?

Meu pai era muito ocupado. Eu era muito bebê, não lembro o que ele fazia. Mas foi no Recife que ele começou a trabalhar com o método de alfabetização de adultos. A convivência familiar era bastante harmoniosa, somos cinco filhos, três mulheres e dois homens; eu sou o caçula. Eu via meu pai trabalhando muito, minha mãe também trabalhava, era diretora de escola e eles eram muito amorosos com a gente. Sempre respeitando muito cada um dos filhos e é claro, educando cada um do seu jeito. Morávamos em uma casa que ainda existe e me lembro que o bairro se chamava Casa Forte (Lutgardes deixou o Recife com cinco anos de idade junto à família). Ele viajava muito e sentíamos muita falta dele, mas quando ele retornava, era uma festa. Quando morávamos na Suíça, ele viajou pela primeira vez para a África e ele disse: ‘Foi o meu reencontro com o Brasil. Eu comi uma manga, comi uma jaca’. Aquilo para ele era muito importante e isso foi muito marcante para nós também”.

O exílio no Chile durou 4 anos e meio e deixou marcas profundas. Quais sentimentos marcaram esse momento difícil vivido por Paulo Freire, você e sua família?
Saudade. Às vezes misturado com raiva. Meu pai recebeu uma revista de um político brasileiro da época dos militares perguntando por que ele queria Paulo Freire no Brasil? Para que ele queria sarnas para se coçar? Ele ficava enfurecido, mas ele sabia dominar a saudade dele. Foi no Chile que meu pai escreveu a Pedagogia do Oprimido, em 1968. Durante o processo de escrita, toda visita que chegava, ele lia o livro. Era algo muito emocionante de ver, eu ficava alucinado. Um dia, ele leu o livro para aquele político, Márcio Moreira Alves, até 3 da madrugada, e eu escutando também e tentando segurar o sono. Até que chegou uma hora que eu disse: ‘Pai, vou dormir, porque não aguento mais’. E ele dizia: ‘Vá, meu filho, isso não é coisa para você. Você é muito criança’ (risos). Ele escrevia esse livro todos os dias. Voltava do trabalho às 19h, jantava e, depois do jantar, ia diretamente para o escritório dele e continuava escrevendo.

Por que a metodologia freiriana ainda incomoda tanto alguns grupos?
O Brasil ainda não entendeu a alfabetização e filosofia do meu pai. Ele propõe uma escola dialógica, de conhecimento, onde os alunos se sintam felizes em estudar; uma escola amorosa, onde o diretor não é único que dirige. É uma escola política, até porque não existe escola neutra nem essa coisa de escola sem partido. Existe uma escola em que o professor tem o direito de defender sua ideologia, mas não de impor aos alunos. A educação do meu pai é da liberdade, da crítica, da criatividade.

O que seu pai deixou de mais bonito no mundo?
Essa é uma pergunta que ninguém me fez (risos). Eu até fico emocionado (Lutgardes fica em silêncio por alguns segundos e depois tenta engatar uma resposta, mas começa a chorar e pede desculpas). O que Paulo Freire deixou de mais bonito no mundo foram os cinco filhos com Elza Freire. Em seguida, continua: porque era o que ele tinha de melhor (risos).