ENTREVISTA - MARIA DA HORA // IRMã DE AUDO ALVES DA HORA » "O trabalho era perigoso, mas ele tinha que ganhar o pão"

Publicação: 27/11/2021 07:45

Quem era Audo, com quem você conviveu por 38 anos?
Meu irmão era o caçula de uma família de 13 filhos. Ele era sete anos mais jovem que eu e era como se fosse meu filho. Sempre foi um jovem muito comedido, responsável com dinheiro. Tudo que fazia era para ajudar sua família. Era muito talentoso e curioso. Construiu sua casa sozinho. Tudo que tem na casa foi ele que fez. Além de operário da refinaria, sabia trabalhar como pedreiro, eletricista e marceneiro. Nos períodos em que estava desempregado, fazia trabalhos ocasionais e cursos para se capacitar. Também gostava muito de cavalos e sonhava ser dono de um rancho quando se aposentasse.  Em 2002, todos nós, irmãos e irmãs, viemos morar no Recife, menos ele, que continuou em Chã de Alegria, na companhia de nossos pais. Ele também tinha paixão por cavalo. Anos atrás, comprou um carro para trazer sua filha Sofia ao Imip, duas vezes por semana, para fazer terapia ligada à síndrome de Down. Quando o tratamento acabou, vendeu o carro e comprou um cavalo. Seu sonho era ter um rancho. Estava sempre nas vaquejadas e cavalgadas. Agora não conseguimos mais nem ouvir música de vaquejada.

Como ele começou a trabalhar no ramo de petróleo?

Quando Audo tinha 19 anos, ele e sua esposa, Mônica, tiveram o primeiro filho, que morreu de embolia com um dia e meio de vida. Ali ele percebeu que tinha a responsabilidade de sustentar sua família. Começou a procurar trabalho, mas em Chã de Alegria só havia a Prefeitura ou o setor da cana de açúcar. Começou a ficar inquieto. Ele era sustentado pelos pais e não gostava. Então surgiu a oportunidade de trabalhar para uma terceirizada da Petrobras em Linhares, no Espírito Santo. Juntou dinheiro e chamou a esposa e a filha mais velha, atualmente com 16 anos, que já era nascida. A família passou quatro anos no Espírito Santo. Audo foi demitido e terminou voltando para Chã em 2012. Usou a indenização e dinheiro de bicos para construir sua casa. Arrumou um emprego em outra terceirizada da Petrobras, como eletricista. Alugou um apartamento no Cabo, junto com colegas, e ia para Chã de Alegria aos fins de semana. O salário era bom e ele tinha plano de saúde. Em 2014 a empresa fechou e ele perdeu esse emprego.

Em janeiro de 2021, assinou o contrato com a QWS. Ele disse que a função era meio perigosa, mas tinha que ganhar o pão de cada dia. Ele passava a semana em um alojamento com colegas e os fins de semana em casa. Às vezes dormia aqui na minha casa, na Iputinga (Recife), indo ou voltando para Chã. Para fazer o trajeto, ele comprou um carro junto com um colega da mesma firma. Cada um pagava 600 reais por mês de prestação. Normalmente, eles saíam de Chã umas 4h30, 5h, para estar na empresa às 7h30.

O que a família sabe sobre o acidente?
Audo voltou do almoço naquele dia (27 de setembro) e estava fazendo manutenção de uma válvula que separa o diesel de alguns componentes. Essas válvulas deviam estar sem pressão, mas a peça que mandava a pressão para a atmosfera não estava lá. Audo levou uma pancada de 400 quilos de ar comprimido no abdomen e foi arremessado a uma distância entre 5 e 15 metros. Morreu por politraumatismo. Foi tão rápido que acredito que eu acho que até o espírito dele ficou sem entender. Danificou todos os órgãos vitais. Quando chegou o socorro, já estava sem pulso.

O acidente foi às 15h20, mas só soubemos às 17h. Um dos meus irmãos recebeu informações desencontradas da empresa e mandou todos irem pra Chã, sem dar detalhes. Eu achei que tivesse acontecido algo com meu pai. Tinha muita coisa circulando no "zap". Às 18h10 soubemos da morte do meu irmão, por uma vizinha da minha mãe. Só às 21h ou 22h soubemos que o corpo do dele (que foi retirado do local do acidente às 19h) estava no IML do Recife. Mas tudo vazava em grupos de WhatApp de Chã de Alegria antes mesmo da família saber.

Mônica teve que ser socorrida para tomar soro. No posto, recebeu a notícia desencontrada, pelo WhatsApp, que o marido tinha sido reanimado e estava vivo. Agradeceu a Deus. Quando chegou em casa, soube que ele realmente estava morto. Além do luto, ela agora tem que lidar com uma situação financeira difícil, pois Audo era o provedor da família. Colegas e familiares fizeram uma vaquinha que ajudou a tratar dos muitos trâmites pós-morte. A empresa deu a indenização relativa aos oito meses de serviço. A gente deu entrada em pensão morte, no INSS, que ainda não saiu.

Como estão suas sobrinhas?
Grande parte dos esforços de Audo na sua vida profissional visava dar um futuro melhor para a filha Sofia, que tem Down. "Minha preta, foi uma luz que Deus te colocou na minha vida. Tudo que faço por você eu faria dez vezes", dizia ele. A menina tem 8 anos e até hoje não conseguiu um pediatra pelo SUS. Não consegue falar uma frase completa. Não tem fonoaudiólogo nem terapia de psicomotricidade. Tem poucas habilidades. Ela é esperta por conta do convívio, mas, na idade em que está, deveria ser muito mais desenvolvida. Ela está fazendo fonoaudiólogo com o dinheiro que a família recebeu de indenização por tempo de serviço após a morte de Audo, mas o dinheiro vai acabar. Ela precisa tomar remédios e tem alimentação restrita. Depois que Audo morreu, Sofia diz que “Papai virou uma estrelinha, tá no céu.” Também diz que o pai está trabalhando. Ela ainda está digerindo a situação. Já Maria Eduarda, a mais velha, é meio calada, feito o pai. Tem um coração enorme, uma tranquilidade invejável. Mas gente tem percebido que ela está mais fechada e não se expressa muito desde que o pai morreu.

Meus pais também estão sofrendo tremendamente. Minha mãe (Iracema, 73), entrou em depressão. Acorda de madrugada e não para de falar nele. Vai para o portão esperar por ele. Audo morava próximo da casa dela. Chegava lá, assobiava e ficava se escondendo. Minha mãe dizia. “Apareça, Audo, sei que és tu.” Agora, ela não consegue mais nem ouvir um assobio.