O espírito livre do jazz Livro clássico sobre o estilo norte-americano joga luz sobre uma das músicas mais libertárias do século 20

Gabriel de Sá
edviver.pe@dabr.com.br

Publicação: 24/09/2014 03:00

Charlie Parker (ACERVO WILLIAM P. GOTTLLIEB/REPRODUCAO DA INTERNET)
Charlie Parker

“A história do jazz é, antes de tudo, uma história de luta e liberdade. Luta de homens que ganharam o pão como artistas independentes numa sociedade segregada pelo racismo e que, embora tendo que se submeter às leis do mercado, souberam preservar espaços e formas de autonomia”. Para além de  simples manifestação musical surgida nos Estados Unidos nos primeiros anos do século passado, o jazz tem sido utilizado por críticos e pesquisadores como forma de aproximar, com mais precisão, dos contextos sócio-culturais em que o estilo atingiu maior expressão.

O trecho, escrito pelo tradutor Rainer Patriota, aparece na abertura de O livro do jazz — De Nova Orleans ao século 21, que ganha nova edição brasileira e procura se aprofundar no gênero de maneira definitiva — dos bastidores e das inovações estéticas às questões políticas. Referência internacional sobre o jazz, a obra foi publicada pela primeira vez em 1953, pelo alemão Joachim-Ernest Berendt, morto em 2000. A sétima versão foi concluída por Günther Huesmann — colaborador do autor desde a década de 1980.

O gênero musical criado nos EUA por negros cujo passado estava associado à escravidão atravessou o século 20 como um dos mais representativos da cultura e da sociedade norte-americanas, o que, por consequência, acabou por desaguar em manifestações musicais mundo afora — como ocorreu à bossa nova brasileira na década de 1950. O jazz passou a falar alto não só aos negros, mas a todos que tinham a liberdade como ideal.

Mas por que a principal referência literária sobre o jazz veio à luz pelas mãos de um alemão? Na apresentação da sétima edição da publicação, o tradutor Rainer Patriota explica que, apesar da tradição do país europeu na música erudita, o gênero norte-americano aportou em Berlim durante o período que ficou conhecido como República de Weimar, entre 1919 e 1933. A ascensão de Adolph Hitler e dos ideias nacionalistas trataram de expulsar as manifestações estrangeiras do país — o jazz, entre elas.

Louis Armstrong (REPRODUCAO DA INTERNET/REDHOTJAZZ.COM)
Louis Armstrong
O jovem Joachim-Ernest Berendt, de origem judaica, havia sido contaminado pelo gênero afro-americano e, mesmo durante o regime nazista, não deixou de apreciá-lo e estudá-lo. A partir de 1945, com a derrocada de Hitler, o estilo voltou a adquirir cidadania germânica.

Berendt, àquela altura, apresentava programas de rádio e tevê em torno do jazz, organizava festivais e atuava como produtor musical. Todo o embasamento teórico sobre o assunto ganhara, também, a vida prática do crítico e estudioso. Ele convivia com os músicos e ajudava a divulgar a música que se fazia na Europa. “Como teórico, Berendt sustentou não apenas a equivalência entre o jazz e a música de concerto, mas também se empenhou em identificar e definir conceitualmente os aspectos essenciais que singularizam o jazz e, por conseguinte, o diferenciam-no das formas musicais eruditas”, relata Rainer Patriota em um dos textos de abertura da publicação.

Saiba mais

O que O livro do jazz diz sobre eles

Charlie Parker
“Charlie Parker havia encontrado no quinteto do bebop a formação que mais lhe convinha: saxofone, trompete e base rítmica. O quinteto de Charlie Parker foi tão importante para o jazz moderno quanto o Hot Five de Louis Armstrong para o jazz antigo. (…) Hoje está bastante claro que Dizzy Gillespie foi o músico do bepop mais celebrado. Mas, certamente, não foi ele que deu o grande impulso criativo para essa música, pois isso partiu de Charlie Parker.”

Miles Davis (DON HUNSTEIN/SONY BMG)
Miles Davis

Louis Armstrong
“Até a ascensão de Dizzy Gillespie nos anos 1940, não havia um só trompetista de jazz que não descendesse de Louis Armstrong. (…) E Dizzy Gillespie disse: ‘O lugar de Louis Armstrong na história do jazz não tem comparação. Se ele não existisse, nós não existiríamos’. Mas também músicos que não tocavam trompete expressaram sua gratidão a Armstrong. Frank Sinatra observou que ‘foi a partir dele que o canto da música popular se tornou arte’.” 

Miles Davis
“‘Talvez tenhamos de reconhecer que os únicos feitos estéticos depois da grande época de (Charles) Parker e Gillespie foram os de Miles Davis’, ponderou André Hodeir, ainda em 1956. O crítico de jazz inglês Michael James afirmou: ‘Não é nenhum exagero dizer que nunca antes na história do jazz alguém tinha capturado e traduzido o fenômeno da solidão de forma tão penetrante quanto Miles Davis’. Com essas duas citações, demarcam-se, respectivamente, a situação histórica e a peculiaridade expressiva da música de Miles.”

Dizzy Gillespie (REP. DA INTERNET/REDHOTJAZZ.COM)
Dizzy Gillespie
Duke Ellington
“Uma das melhores qualidades de Ellington era a forma com que ele transmitia aos músicos suas ideias, deixando em cada um a impressão de ser, como compositor, apenas um meio para o desenvolvimento daquilo que era inato e latente em cada músico. Nessa relação entre Duke e seus músicos (…), constata-se que tudo o que ele escreveu parece ter sido escrito exclusivamente para ele e sua floresta, sendo, por isso, quase inconcebível, entregar suas obras a outros intérpretes.”

John Coltrane
“Coltrane foi um hesitante judicioso. Ele levou dez anos para dar o passo que deu em 1967, passo que seria dado num único dia por uma geração inteira de músicos. Quem ouve as linhas de Naima fluindo como uma oração, vibrando de modo sublime, percebe a nostalgia de Coltrane em relação ao tonalismo. Coltrane sabia que pagaria um preço alto rompendo com esse sistema.”

Dizzy Gillespie
“O trompete de Dizzy foi o mais claro e triunfante — e suave — da história do jazz. Gillespie se interessou cada vez mais pelo lado percussivo do novo jazz. ‘Eu sou um homem do ritmo’, disse ele, ‘o ritmo é o fundamento do edifício. Se você ignora o fundamento, todo o resto vem abaixo’. Billy Eckstine comentou: ‘Quando Dizzy cantarola, você percebe que ele faz parte da bateria e do baixo.”

Números

1953
Ano em que o livro foi publicado originalmente

1,5 milhão
Número de cópias vendidas d’O livro do jazz pelo mundo

Serviço

O LIVRO DO JAZZ: DE NOVA ORLEANS AO SÉCULO XXI
de Joachim-Ernest Berendt e Günther Huesmann. Tradução de Rainer Patriota e Daniel Oliveira Pucciarelli. Edições Sesc São Paulo e Editora Perspectiva, 640 páginas. Preço: R$ 129.