Só quero andar nas ruas
Cenário cultural do Recife era bem diferente na época em que o manguebeat surgiu. Movimento invadiu espaços da cidade sem a ajuda da web
Larissa Lins e Luiza Maia
edviver.pe@dabr.com.br
Publicação: 14/03/2016 03:00
![]() | |
Principais bandas da cena mangue, Nação Zumbi e Mundo Livre S/A deram início à escalada nacional |
Chico Science tinha apenas 19 anos quando montou a primeira banda, Orla Orbe, com quem fez a primeira – e amadoríssima – gravação de A cidade. Frequentador das rodas de break e fã contumaz do Public Enemy, ele, ainda sob a alcunha de Chico Vulgo, era um dos muitos garotos atraídos pelo interesse magnético por música.
Muitos lançamentos musicais chegavam ao Recife com anos de atraso. Outros sequer eram importados, assim como a produção local, incipiente, mal atingia o público da capital. “A gente tinha perdido a referência de ter alguma coisa do Recife projetada nacionalmente. Desde a geração de 1970, com Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Lula Côrtes”, recorda Paulo André, empresário de Chico desde 1993.
As reuniões de amigos incluíam audições dos álbuns e compartilhamentos de informações. Os empréstimos e as fitas cassete eram a mídia utilizada para “piratear” álbuns trazidos por amigos com chance de realizar compras no exterior ou em São Paulo. “Eu acho que a nossa turma sempre foi antenada, desde as gravações, revistas, jornais importados, cadernos de cultura, discos, cassetes que amigos enviavam. E, claro, trocando figurinhas”, recorda Renato L.
Enquanto o axé ascendia rumo ao topo das paradas de sucesso nas rádios e conquistava a esmagadora maioria do público - o Recifolia desfilou pela primeira vez em 1993, mesmo ano da estreia do Abril Pro Rock -, a escassez de espaços para as apresentações das próprias bandas impulsionaram o surgimento de endereços inusitados para a geração da época.
“Quando juntamos com o conceito de mangue, era mais para melhorar a cidade, agitar a cena. Os cinemas estavam fechando, a cidade parada. Nós queríamos pleitear mais diversão. Falávamos muito disso, melhorar o ambiente em que vivíamos”, analisa o percussionista Gilmar Bolla8, parceiro de Chico na Loustal e Nação Zumbi.
Além do lendário bar Soparia, verdadeiro quartel-general da época, os mangueboys e manguegirls ocuparam boates gays, como a Misty (onde funciona hoje a Metrópole), puteiros e até realizaram baladas em um barco abandonado após incêndio. Sem opções de contrato, a turma, no melhor estilo punk de “do it yourself” (faça você mesmo) e em clima de cooperativa, produzia as próprias festas e impulsionava o surgimento de um pequeno circuito de endereços culturais para receber os shows das bandas.
Não à toa, o Manifesto Mangue, lançado em 1992 e assinado por Fred ZeroQuatro, da Mundo Livre S/A, era na verdade o release (texto enviado para a imprensa) da festa Viagem ao Centro do Mangue. “Eu fui contratado para roteirizar um documentário sobre manguezais. O parágrafo de abertura da narração é o mesmo do manifesto. Além disso, na época, a MTV estava aqui no Recife para fazer reportagens de comportamento”, frisa Fred. Era o pontapé para aquele grupo de jovens apaixonados por música gerarem o principal movimento musical dos anos 1990 em Pernambuco.
Os lugares
Parada obrigatória
A Soparia, bar do agitador cultural Roger de Renor, estava quase sempre aberta. No Pina, era o ponto de encontro da cena local, com shows - a Nação Zumbi tocou uma única vez lá - , desfiles de moda e outros eventos. Ao redor, surgiram bares como Borracharia e Oficina Mecânica.
Os puteiros
No fim dos anos 1980, o Adília’s Place (foto), rebatizado Francis Drinks, recebeu a primeira festa em puteiro: Sexta Sem Sexo. Eles pagavam para alugar as casas, como Athenas, e o bar ficava por conta da administração. O cenário e a música “maluca” eram os principais atrativos.
Mesa de bar
O circuito de bares da Zona Norte era destino certo. O Cantinho das Graças era o preferido, com radiola de ficha. “Era muito maluco, com coelho, galinha. O cara botou mesa, quebrou as paredes, até que virou um galpão”, conta o fotógrafo Fred Jordão.
Centro Luiz Freire
Fundado em 1972, em Olinda, o Centro de Cultura, assim como o Clube Atlântico, recebeu shows da cena mangue e várias festas. Um dia antes de morrer, Chico Science reencontrou vários amigos, durante a prévia do bloco Enquanto Isso na Sala da Justiça.
Oásis
Palco de shows da Orla Orbe, tinha parca estrutura. “Oásis foi bem importante, era do Kurt, um alemão gente fina. Foi lá que aconteceu o debut de Chico à frente do Lamento Negro”, recorda o DJ Dolores. Nasi, do Ira!, fez canja em apresentação da Loustal.
Mercado Pop
Criado em 1995, era inspirado nos mercados públicos de Paris, segundo o idealizador, Evêncio Vasconcelos. O galpão onde foi erguido o Paço Alfândega, o festival Abril Pro Rock, a Torre Malakoff (onde Chico discotecou) e os armazéns 12 e 13 receberam o projeto.
Lojas de discos
Duas lojas eram reduto para os lançamentos. A Discossauro ficava próxima ao Parque 13 de Maio, com discos de vários estilos. O produtor Paulo André fundou a Rock Xpress, especializada em heavy metal. Na foto, tarde de autógrafos da banda Morbid Angel.
Arte Viva
Academia de dança, foi um dos lugares travestidos em centros culturais diante dos poucos points. Mundo Livre, Vã Filosofia, Santa Boêmia, e MDR (transformada em Paulo Francis Vai Pro Céu) tocaram lá. Pokoloko e Mauritztaad, no Antigo, eram palcos alternativos.
Daruê Malungo
Sede dos ensaios do bloco de samba-reggae Lamento Negro, a ONG promovia aulas de capoeira, frevo e percussão na comunidade de Chão de Estrelas. Criado pelo mestre Meia-Noite, o espaço é citado na canção O cidadão do mundo, no álbum Afrociberdelia.
Joana D’Arc
Com bares, como o Satchmo, recebia festas. “Fizemos uma festa de Natal dos fundos da galeria, em 1992. Foi um divisor de águas, porque todas as pessoas descoladas estavam lá. Rapidamente a coisa se espalhou nos anos seguintes”, conta Renato L.