Uma morte lenta e sofrida Em tempos de Trump e Bolsonaro, livro disseca o fenômeno do retorno ao autoritarismo

BRENO PESSOA
breno.pessoa@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 23/10/2018 03:00

Em trecho da introdução de Como as democracias morrem (Zahar, 272 páginas, R$ 59,90), os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt escrevem que “políticos norte-americanos agora tratam seus rivais como inimigos, intimidam a imprensa livre e ameaçam rejeitar o resultado das eleições”. A observação pode, facilmente, ser transposta para a realidade atual brasileira, sobretudo durante o acirramento da corrida pelo segundo turno das eleições presidenciais, quando o viés autoritário de uma das candidaturas se faz cada vez mais visível. O livro faz parte de uma leva recente de publicações que ajudam o leitor a compreender melhor o cenário político contemporâneo, dentro e fora do país.

E embora o contexto recente dos EUA, a partir da eleição de Trump, seja um dos pontos de partida para a argumentação do recém-lançado livro, a obra analisa evidências de colapso democrático e fortalecimento de movimentos autoritários em outras partes do mundo e outras épocas. O atual presidente norte-americano, aliás, é definido pelos autores como alguém “com aparente pouco compromisso no que diz respeito a direitos constitucionais e dono de claras tendências autoritárias”. Professores de ciência política na Universidade de Harvard, nos EUA, Levitsky e Ziblatt percorrem episódios como a ascensão do nazismo e fascismo na década de 1930, governos militares da América Latina entre os anos 1960 e 1970 etc.

Enquanto a maior parte dos casos citados no livro teve atuação direta ou indireta de militares, por via de golpes ou coerção, a dupla de autores dedica atenção especial a governos autoritários postos no poder por meios democráticos. “A via eleitoral para o colapso é perigosamente enganosa. Com um golpe de estado clássico, como no Chile de Pinochet, a morte da democracia é imediata e evidente para todos”, escrevem os autores. “O palácio presidencial arde em chamas. O presidente é morto, aprisionado ou exilado. A Constituição é suspensa ou abandonada”, complementam. “Na via eleitoral, nenhuma dessas coisas acontecem”, observam, afirmando que, nesse contexto, os governantes eleitos “mantêm um verniz de democracia enquanto correm a sua essência.”

Os autoritários eleitos, sugerem Levitsky e Ziblatt, realizam essa movimentação de maneira lenta, com medidas que podem, à primeira vista, serem pertinentes e legais. “São adotadas sob o pretexto de diligenciar algum objetivo público legitimo – e mesmo elogiável –, como combater a corrupção, ‘limpar’ as eleições, aperfeiçoar a qualidade da democracia ou aumentar a segurança nacional”.

Situações de crise econômica ou agravamento de problemas sociais, como tem ocorrido nos últimos anos no Brasil, são propícias ao surgimento de candidatos com viés autoritário, asseguram os autores de Como as democracias morrem. E, com frequência, são figuras populistas, outsiders, como presidentes eleitos na Bolívia, no Equador, no Peru e na Venezuela nas últimas décadas, a exemplo de Alberto Fujimori, Hugo Chávez, Evo Morales, Lucio Gutiérrez e Rafael Correa. “Todos os cinco acabaram enfraquecendo as instituições democráticas”.  

Ameaça
A despeito dos paralelos com o Brasil, Como as democracias morrem não chega a abordar diretamente questões atuais do Brasil, já que a obra foi lançada originalmente nos Estados Unidos no início do ano. Mas o coautor Steven Levitsky, especialista em América Latina, declarou em entrevista à BBC de Londres que considera Bolsonaro uma “ameaça populista à democracia”, que traz riscos de “eliminação de direitos civis básicos, especialmente das minorias, dos pobres, dos trabalhadores rurais”.

De escrita clara e fluída, Como as democracias morrem é um rico compilado sobre as raízes e consequências da ruptura democrática atravessada por alguns governos, com bem embasadas argumentações e exemplos. Uma leitura elucidativa, mas não alentadora, já que as respostas sobre como evitar (e enfrentar) a questão ainda não parecem claras.

Fique atento

Os quatro indicadores de comportamento autoritário segundo Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, a partir dos trabalhos do cientista político Juan Linz
  1. Rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com ela)
    Na descrição do tópico, a dupla de autores cita não só movimentações óbvias, como golpes militares, mas também táticas como a incitação a “insurreições violentas ou protestos de massa destinados a forçar mudanças no governo”. Outro exemplo dado é o de candidatos que questionam a legitimidade dos processos eleitorais.
  2. Negação da legitimidade dos oponentes políticos
    Em outro campo facilmente identificável na política atual, o livro descreve políticos que apontam, sem fundamentação, os oponentes como uma ameaça à ordem constitucional. A sugestão de aliança dos oponentes com governos estrangeiros é outro indício.  
  3. Tolerância ou encorajamento à violência
    Os indicativos, neste caso, são vários e passam pelo endosso da violência dos apoiadores contra oponentes partidários e à existência de qualquer tipo de laço com forças paramilitares, milícias gangues. Mais um indicador: o elogio (ou recusa a condenar) atos de violência política.  
  4. Propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia
    Apoio a leis ou políticas que restrinjam liberdades civis e limitem a possibilidade de protestos ou a existência de certas organizações cívicas ou políticas.
Outras leituras

Valsa brasileira: do boom ao caos econômico (Todavia, 192 páginas, R$ 49,90)

Livro de estreia da economista e professora da USP Laura de Carvalho, o título investiga o crescimento econômico vivido pelo país a partir de 2006 e a desaceleração e crise dos últimos anos. Na análise, que atravessa os governos de Lula, Dilma e Temer, a autora narra, cronologicamente, os principais acontecimentos econômicos do país e seus impactos sociais.

O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 128 páginas, R$ 15)
Organizado por Esther Solano, o volume traz textos de Luis Felipe Miguel, Silvio Almeida, Camila Rocha, Rosana Pinheiro-Machado e outros autores sobre o fenômeno das ondas conservadoras no país. A versão digital do livro está disponível para download gratuito na Amazon, Apple, Google Play e Kobo até 28 de outubro, dia das eleições do segundo turno.

Ruptura: a crise da democracia liberal (Zahar, 152 páginas, R$ 39,90)
Neste ensaio, o pensador Manuel Castells se debruça sobre a falta de identificação entre os governantes e governados e como isso tem se refletido no atual rumo das democracias. O teórico espanhol cita, inclusive, mobilizações populares do Brasil e de outros países contra alguns governos, além da consolidação de regimes autoritários como os da Rússia e China.  

A pátria educadora em colapso (Três estrelas, 352 páginas, R$ 59,90)
O ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, que participou do governo Dilma, conta bastidores da passagem pela pasta e da convivência com a ex-presidente. O filósofo ainda reflete sobre desafios para o setor e propõe o ensino a distância para cursos superiores como forma de reparar a dívida educacional com brasileiros que não puderam cursar faculdade.