Nelson Rodrigues sempre atual Terceira adaptação cinematográfica da obra do pernambucano, o longa O beijo no asfalto, dirigida por Murilo Benício e com grande elenco, estreia hoje nos cinemas do país

BRENO PESSOA
breno.pessoa@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 06/12/2018 03:00

A ideia de levar mais uma vez ao cinema uma história já bem contada anteriormente quase sempre suscita dúvidas sobre a real necessidade de tal empreitada. Parece, então, um movimento natural olhar com certa desconfiança a chegada de uma nova versão de O beijo no asfalto, terceira adaptação cinematográfica do consagrado texto de Nelson Rodrigues (1912-1980). Em cartaz a partir de hoje, a mais recente releitura é também a estreia na direção de Murilo Benício.

Fora o fato de já ter sido adaptada de maneira competente em O beijo (1965), por Flávio Tambellini, e em O beijo no asfalto (1981), de Bruno Barreto, pesa sobre a obra do escritor pernambucano o fato de ser uma de suas peças mais montadas para o teatro, inclusive no formato de musical, como na montagem de Claudio Lins, encenada recentemente no Recife. Sendo uma narrativa já conhecida do público, eram grandes os riscos de este novo filme acabasse se saindo apenas um olhar atualizado, mas talvez dispensável, sobre o texto rodriguiano. Felizmente, não é o caso.

O filme entregue por Murilo Benício consegue, ao mesmo tempo, ser extremamente fiel à peça publicada em 1960 e diferente de qualquer outra versão. Simultaneamente, é um exercício de cinema e teatro, já que o filme oferece segmentos que abarcam o registro cinematográfico e também uma filmagem teatral. Em paralelo, a produção ainda envereda pelo documentário, ao mostrar também os bastidores da montagem da peça e preparação dos atores.

“Imaginei que fazer apenas uma nova versão seria uma coisa desnecessária”, diz Murilo Benício, que almejava um trabalho menos convencional e mais sofisticado. Um dos desafios, conta, foi equilibrar a tarefa de contar a história ao mesmo tempo em que mostra os bastidores de uma montagem teatral. Outra intenção era fazer o público entender um pouco melhor o processo de preparo de um elenco. “Ser ator é uma coisa difícil, demorada, produzida. Não é só decorar um texto e ir pro set”, afirma.

Ator experiente e diretor estreante, ele diz não ter um profundo conhecimento da obra de Rodrigues e se valeu não só do interesse particular pela peça, mas trouxe para perto o veterano teatrólogo Amir Haddad, que dirige a montagem transposta para as telas. O diretor teatral não é o único nome tarimbado ligado ao filme, que tem no elenco Fernanda Montenegro, Débora Falabellla, Lázaro Ramos, Stênio Garcia, Otávio Müller e Augusto Madeira. Outro medalhão é Walter Carvalho, responsável pela fotografia.

O roteiro, também assinado por Benício, segue com fidelidade a premissa original da história: Arandir (Ramos) presencia um atropelamento e, ao se aproximar da vítima, um homem, recebe um inesperado beijo na boca, desejo que é atendido. O acontecimento vira manchete sensacionalista de uma matéria escrita pelo repórter Amado (Müller), o que acaba levando a polícia a investigar o caso, além de trazer desconforto para Selminha (Falabela), esposa de Arandir.

“A gente está descobrindo, ainda mais, o quanto ele é atual”, observa Benício, acrescentando que o autor fala sobre a alma humana e não sobre o tempo. O diretor considera que a sociedade segue vivendo o fantasma da intolerância e que “as eleições afloraram muito o preconceito”.

O novo O beijo no asfalto não só reforça a contemporaneidade de Nelson Rodrigues como se mostra uma releitura relevante, arrojada e original, que consegue se distanciar de uma leitura convencional da obra sem abrir mão da fidelidade à sua matéria-prima. É não só um ótimo drama como também uma interessante e rica imersão sobre o processo de criação artístico.

Direção

“Estou montando meu segundo longa, ainda tem muito chão pela frente. É uma coisa nova para mim, estou gostando muito e sinto que melhoro como ator”, diz Benício a respeito das incursões por trás das câmeras. “Não tem nada a ver com descansar imagem, isso é besteira. O que se tem que descansar é a alma, para não cair em um ciclo repetitivo”, afirma o realizador, ressaltando que não quer ficar sem nada de novo para mostrar ao público. “Sem isso, você acaba caindo, inevitavelmente, na repetição. É preciso respirar outras coisas para voltar de uma outra forma”, diz. “Eu acho que é isso, estou com 25 anos de carreira, buscando o tempo inteiro fazer projetos diferentes, achar nova graça, ter vontade de criar e ficar estimulado com o novo”, pontua.