Um país que não se deixa oprimir Assim pensa Wagner Moura sobre o seu filme, Marighella, ovacionado no Festival de Berlim

Publicação: 16/02/2019 03:00

Wagner Moura tem ouvido os maiores elogios por sua coragem, seu esforço. Um jornalista de Israel chegou a dizer que, se Marighella estivesse na competição para valer, não teria para ninguém. Urso de Ouro! Foi difícil chegar lá, mas o aplauso caloroso do público na sessão oficial do filme, sexta-feira, foi um reconhecimento. Embora sem chance de ser premiado neste sábado - o filme passa fora de concurso -, ele espera que as críticas favoráveis ajudem a alavancar logo o lançamento no Brasil.

Marighella ainda não tem data. A produtora Downtown e a distribuidora Paris Filmes acham que o momento não é adequado, mas Wagner e as produtoras Bel Belinky e Andrea Barata Ribeiro acham que é totalmente adequado. Ele sabe que vai tomar porrada. “Minha vida ficou complicada. Sofro todo tipo de ataque. Sei que o lançamento não vai ser fácil, vão querer jogar merda, mas é o espelho do Brasil. Não quis fazer um filme de mocinhos e bandidos”, diz. “Mas Marighella sempre me fascinou porque evoca um Brasil resistente, um Brasil que não se sujeita. Sempre gostei de História (a grande). Todas essas revoltas que permeiam a história do Brasil. O país fundamenta-se na desigualdade e existem todas essas histórias de combate, de resistência. No momento em que se fala que não houve ditadura no Brasil, mas um ‘movimento’, fiz o filme, conscientemente, para mostrar, sim, que 1964 instalou uma ditadura, e foi brutal.”

Ele sabe que terá muita gente contra, mas espera ter também a favor. Mesmo de uma perspectiva de esquerda, tomando partido, sabe que não fez um filme hagiográfico. Não era a intenção. “Marighella faz coisas que podem ser contestadas, mas me fascinou essa possibilidade de humanizar um personagem que ainda é pouco conhecido dos brasileiros.” Revolucionário, amante, pai - Marighella tem muitas caras no filme. Seu Jorge, que faz o papel, nutriu-se de suas experiências na quebrada de Belfort Roxo, onde se criou, no Rio. Ele não era a primeira opção de Wagner, e assumiu em cima da hora. Teve só um mês de preparação. Ainda bem que conhecia a preparadora de elenco Fátima Toledo, que o submeteu a um duro processo.

Bruno Gagliasso, que faz seu antagonista, o policial Lúcio, inspirado no torturador Fleury, conta de outro ângulo o que foi essa preparação. “Tenho uma filha negra, e por isso mesmo não acreditava que conseguisse fazer. Todas essas coisas horríveis, ofensivas e violentas que digo para Seu Jorge (Marighella). Mas era preciso, e eu fiz com amor. É um filme importante. Fiz pela minha filha, pelo futuro dela, que espero que seja melhor.” Gagliasso chorou na coletiva. E Wagner - “Não preciso defender Marighella porque ele fala por si no filme. Com seu carisma, sua liderança. Mas eu gosto que até o antagonista não seja estereotipado. Lúcio não é um vendido. Acredita no que faz, e por isso coloquei um ator bonito como o Bruno para fazer o papel. Não é tanto para criar uma cumplicidade, mas para que o público perceba o viés humano.” Ele lamenta que, nessa radicalização que acredita ter tomado conta do Brasil, não encontre pessoas dispostas a conversar. “Democracia pressupõe ouvir o outro, trocar informações. O que eu vejo é muita gente obtusa.”

Sua preocupação foi a de fazer um filme que não fosse unidimensional, mas ele sabe que não será poupado pela esquerda nem pela direita. “Já estão falando que fiz um Marighella negro, quando ele era mulato. Mas nessa guerra que virou o Brasil, os jovens negros das favelas são alvos preferenciais. O estado brasileiro matou Marighella. Acho importante contar histórias de pessoas que resistem”, afirma. “No início, quando comprei os diretos (do livro Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães) pensava em só produzir, mas quem poderia ser o diretor? Não sei se escolhi ou fui escolhido, mas essa história virou minha.” (Agência Estado)

Entrevista // Wagner Moura - ator e cineasta

“Um dos primeiros produtos culturais abertamente contrários ao que o Bolsonaro representa.” É assim que Wagner Moura definiu seu filme de estreia, Marighella, selecionado na Berlinale, que ele espera que seja lançado no Brasil “o quanto antes”. Protagonizado pelo ator e cantor Seu Jorge, o filme repassa os últimos cinco anos (1964-1969) da vida de Carlos Marighella, membro do Partido Comunista e líder de um dos primeiros grupos de resistência armada contra a ditadura militar. O líder foi morto por agentes do Exército. Em entrevista a um grupo de jornalistas, Moura, de 42 anos, explicou os motivos que o levaram a fazer seu primeiro longa-metragem - selecionado fora de competição - e como imagina que será sua recepção no Brasil. (AFP)

Por que você decidiu dirigir um filme sobre Carlos Marighella?
A biografia de Marighella tinha sido lançada em 2012 e as histórias de resistência no Brasil sempre me fascinaram. A Revolta dos Malês, na Bahia, meu estado de origem, os protestos contra a ditadura... Especialmente isso, porque eu nasci em 1976. Mas a minha geração era muito diferente da que lutou. Estava alienada. Esses meninos que agora vão às ruas se parecem muito mais com a geração de 1964 que a minha.

O que Jair Bolsonaro tem a ver com rodar Marighella?
Filmamos durante (o governo do ex-presidente) Temer. Então Bolsonaro era uma espécie de piada. Ninguém acreditava (que fosse chegar ao poder). Não quero que este filme seja uma resposta a Bolsonaro. Mas certamente é um dos primeiros produtos culturais abertamente contrários ao que ele representa. Ele mesmo criticou o filme antes de chegar à Presidência.

Como este filme foi proposto quanto à veracidade dos fatos?
Estava claro que tinha que ser um filme, já tem muitos documentários sobre o Marighella. Portanto, há muitas situações e personagens que não existiram, mas a alma do filme tem fundamento sólido.

Como você acha que será sua recepção no Brasil?
Imagino que o filme será criticado pela direita, mas também pela esquerda, que vai garantir que não foi exatamente assim que aconteceu. Estou preparado para tudo, inclusive para que vaiem e joguem lixo na tela. Até para ser agredido fisicamente.

A estreia no Brasil está garantida?
Quero que o filme saia o quanto antes. Mas é um problema. As distribuidoras não têm data, têm medo da reação do governo. O fato de estar na Berlinale e de atrair atenção internacional deve facilitar as coisas.

Como o seu filme abordará o debate sobre o termo “ditadura”, num contexto em que pessoas no Brasil falam agora em “regime autoritário”?
Essa é a chave, o relato. O presidente do Supremo Tribunal Federal (ministro Dias Toffoli) disse que não houve golpe de Estado, mas um movimento. O primeiro passo é a mudança semântica, é dizer ‘não foi tão ruim’. Todos os governos fascistas começam na semântica. Este filme existe para dizer que a ditadura foi horrível.

Para você, qual é exatamente discurso narrativo do filme?
Que a resistência é importante na história e que os cidadãos têm o direito e a obrigação de resistir às ditaduras, aos Estados violentos e aos que não respeitam os cidadãos.

Carlos Marighella é um antídoto do Pablo Escobar para você?
Os personagens do filme são complexos. Eu não pretendo defender o Marighella. Não é um filme de bonzinhos e vilões, embora pessoalmente não possa não me identificar com os revolucionários. Quero fazer filmes nos EUA que não reforcem os estereótipos latinos, especialmente depois de interpretar Escobar.