Memórias sangrentas de um pastor Em cartaz a partir de hoje, documentário Pastor Cláudio conta a história de um evangélico que matou e incinerou opositores da ditadura

EMANNUEL BENTO
emannuelbento@gmail.com

Publicação: 14/03/2019 03:00

Uma sala escura com duas cadeiras justapostas. De um lado, Cláudio Guerra, pastor evangélico e ex-delegado responsável por assassinar e incinerar opositores da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Do outro, Eduardo Passos, psicólogo e ativista dos direitos humanos, que atua atendendo vítimas de violência do estado. Na parede do cenário, projeções com fotos e vídeos das vítimas dos Anos de Chumbo. No diálogo, uma entrevista na qual Eduardo tenta extrair as barbáries cometidas pelo evangélico em um passado recente. Esse é o conteúdo do documentário Pastor Cláudio, escrito e dirigido pela carioca Beth Formaggini.

O projeto foi idealizado ainda em outra conjuntura política do país, com gravação em 1º de abril de 2015, no aniversário de 51 anos do golpe que instaurou o regime. Em 2016, as imagens foram montadas no formato de curta-metragem sob o título Uma família ilustre, que circulou com êxito em alguns festivais. Hoje, estreia como longa no circuito comercial de todo o país, com produção da 4 Ventos Comunicação e distribuição da ArtHouse. No Recife, as sessões são no Cinema São Luiz.

Logo no começo do filme, Beth relata que, quando a gravação estava prestes a começar, Cláudio Guerra se levantou e disse que queria buscar algo. “Quando voltou, vimos que tinha uma bíblia entre as mãos.” A partir daí, as perguntas de Eduardo Passos tentam traçar bem o que foi a ditadura militar e todas as suas máculas para a história do país. Resguardado com o livro sagrado no colo e uma voz serena, Guerra responde com explicações frias e explícitas. Esse conteúdo vai evoluindo aos poucos, mas desde o princípio é natural e sem sinais de arrependimento.

O pastor dá detalhes de como acabou servindo ao regime, quem dava as ordens de execução, como eram as estratégias de emboscada e realização de assassinatos, além dos financiamentos. Seus relatos conseguem lançar um pouco de luz ao cotidiano dos espaços mais obscuros dos DOP’s pelo Brasil - ele atuou no Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Também cita, com certa proximidade, episódios marcantes, como a bomba do Riocentro e os assassinatos forjados do jornalista Vladimir Herzog e da estilista Zuzu Angel.

Além do que já foi registrado pela historiografia nacional, o pastor também dá algumas pistas enigmáticas sobre uma “elite econômica de extrema direita” que “seguia articulada” desde a redemocratização, esperando um momento para colocar suas pautas em voga novamente. Em uma das cenas, Eduardo Passos pede que Cláudio Guerra simule uma das execuções que realizou. O reflexo do pastor na parede, simulando uma arma com as mãos, acabou virando o pôster de divulgação do documentário. É uma imagem que grita atualidade no contexto político em que o filme está sendo lançado.

Entrevista - Beth Formaggini // diretora e roteirista

“Não podemos voltar à barbárie, à censura”

Como surgiu a ideia de colocar Cláudio Guerra em frente a um ativista?
A intenção era justamente ter um violador dos direitos humanos, ele mesmo narrando suas violações. O psicólogo, nesse caso, vem com a prática de escuta. Seu papel é fazer o entrevistado falar, como se fosse uma abertura de arquivos. Para conhecermos mais esses crimes cometidos por ele, em nome do estado brasileiro. Afinal, foram crimes do próprio estado. Conheci o Cláudio quando fiz o filme Memórias para uso diário, em que acompanho uma viúva que está tentando procurar seu marido, um desaparecido político da ditadura, vítima de um esquema chamado Operação Radar. Em 2012, o Cláudio lançou um livro chamado Memórias de uma guerra suja. Eu li e descobri que ele trabalhou justamente nessa operação. Comecei a procurá-lo, consegui encontrá-lo e fazer essa entrevista em 2015.

O Cláudio é bem solícito nas respostas. Acredita que ele seja uma pessoa que queria ajudar?
Ele tem uma personalidade bastante complexa. Por um lado ele conta as coisas, mas também não conta tudo. No próprio filme ele revela que aquilo seria uns 10%. Ele criou esse personagem do pastor arrependido, mas nas frestas do discurso conseguimos ver muita vaidade, ele tem orgulho do que fez. Fica oscilando entre esses vários aspectos, tanto que temos discursos de barbárie que são contados de forma fria.

Como ele reagiu ao filme?
Eu nunca o encontrei antes ou depois da gravação. Só estive em sua presença durante as quatro horas de gravação. Ele já conhece o curta-metragem de 2016, Uma família ilustre, porém nunca me deu um retorno. O longa-metragem já passou na cidade dele, Vitória (ES), e agora vai voltar no circuito comercial, então é possível que ele se manifeste.

A gravação foi em 2015. De lá para cá temos uma outra conjuntura política, com um governo protagonizado por militares e evangélicos. Como é lançar o filme nesse contexto?
Com o tempo, comprovamos que a igreja evangélica tem um projeto político. Nesse filme, não chegamos a abordar isso, mesmo ele sendo um pastor. No entanto, ele aponta para uma “irmandade”, forças que estavam se articulando já naquele ano. Ele comenta sobre pessoas que financiaram a ditadura militar e que ainda existem. Como consequência, temos um governo que quer flexibilizar os direitos trabalhistas, leis de aposentadoria, remover demarcações indígenas. É uma série de medidas que nos leva de volta a um genocídio. Temos aí uma elite ruralista e empresarial que tem como finalidade ter uma sociedade com menos direitos, sejam trabalhistas ou humanos.

Nesta semana, foram revelados os suspeitos de assassinar a vereadora Marielle Franco. Acredita que o filme também lança reflexões sobre esse tipo de fenômeno, em que figuras políticas são eliminadas com violência?

Na época da ditadura, a violência foi praticada pelo estado. Algumas pessoas falam como se fosse algo de coronéis malucos, mas o estado que ordenava as execuções. O próprio filme confirma isso. No caso da Marielle, também temos um crime praticado pelo estado. Que sistema é esse que mandou matar Marielle? A política não pode ser feita com silenciamento de pessoas na base da bala. Temos que fazer política mesmo, de forma institucional, com debates e militância. Isso não é só no sentido político, mas também de comportamento. Não podemos voltar à barbárie, à censura, ao desaparecimento. O filme vem dar uma sacudida nas pessoas para que elas percebam isso.