O Nordeste que resiste ao fascismo Bacurau é um filme necessário e que, num misto de faroeste, suspense e ficção científica, reflete sobre o Brasil atual

Publicação: 24/08/2019 03:00

Uma das características mais potentes da arte é a capacidade de ser o espírito de uma época, o sinal de um tempo, um registro histórico. O longa-metragem Bacurau, dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, carrega essa peculiaridade. Um misto sofisticado de faroeste, suspense e ficção científica, o filme tem um timing perfeito para o momento social e político que aflige o Brasil. Não por acaso, desbancou nomes como Almodóvar, Tarantino e Dolan no Prêmio do Júri de Cannes deste ano. Também venceu categorias nos festivais de Munique e Lima e é um dos favoritos do país para tentar indicação no Oscar de 2020.

Com estreia oficial marcada para a próxima quinta-feira, Bacurau vem tendo sessões de pré-estreia pelo país desde o último dia 17. Neste sábado, será exibido em cinemas do Grande Recife, com destaque para a concorrida sessão no São Luiz, com a presença dos diretores e parte do elenco, às 19h30. O curioso é que a proposta inicial do filme foi feita em 2009. Ao passar dos anos, os cineastas assistiram, assombrosamente, a ficção reclinar sob a realidade.

Esse “zeitgeist”, no entanto, já é algo comum para Kleber Mendonça Filho. Seu primeiro longa-metragem, Som ao redor (2012), era espelho da classe média urbana brasileira em ascensão. Nele, a Zona Sul do Recife era palco de um suspense experimental em edifícios que carregavam heranças colonialistas. Aquarius (2016), também na Zona Sul, ganhou um novo sentido após o protesto no tapete vermelho de Cannes, em que a equipe denunciou um “golpe de estado” contra Dilma Rousseff. No filme, a protagonista Clara (Sônia Braga) se recusava a sair de um prédio antigo cobiçado por uma grande empreiteira. Em algum momento, era como se Roussef se negasse a sair do Planalto.

Eis que chegamos a Bacurau, em que Kleber e Juliano saem do urbano e partem para um interior visceral, ambientado em um Brasil “daqui a alguns anos” e oficialmente dividido entre Norte e Sul. Bacurau é um vilarejo do município fictício de Serra Verde, no Oeste de Pernambuco. Inicialmente, o fio condutor da trama é Teresa (Barbara Cohen), que retorna à cidade para o velório da avó Carmelita (Lia de Itamaracá), uma matriarca local.

A primeira parte do filme, com várias tiragens cômicas típicas de produções audiovisuais no interior nordestino, é dedicada a apresentar personagens singulares que compõem a comunidade: a médica Domingas (Sônia Braga), o professor Seu Plínio (Wilson Rabelo), o “matador” Pacote (Thomás Aquino), o político demagogo Tony Duda (Thardelly Lima), a prostituta Sandra (Jamila Facury). Bacurau é comunidade que tem fim em si mesma.

O suspense entra em cena depois que um disco voador corta do céu, aproximando o filme de um sci-fi retrô no melhor estilo do norte-americano John Carpenter - uma das inspirações do longa, que tem até uma faixa de sua autoria na trilha sonora. Essa série de episódios inusitados inclui o sumiço do vilarejo no mapa, um caminhão-pipa que aparece baleado, uma dupla de motoqueiros desconhecidos, assassinatos inexplicáveis. Bacurau é, efetivamente, atacada por uma força externa e misteriosa.

Um núcleo de atores estrangeiro é comandado pelo alemão Udo Kier, conhecido por interpretar vilões memoráveis no cinema mundial e que adiciona um inegável tom “hollywoodiano” à obra. Quando vai se aproximando do gênero faroeste, o longa-metragem vai criando intrigantes comunicações com a realidade: a glamourização das armas, a relativização da violência descabida, a comemoração ao acertar um “alvo” humano - como se a necropolítica já vigente estivesse ainda mais legitimada.

No mundo real, o Nordeste se tornou um contraponto ao Brasil por não ter escolhido a extrema-direita nas eleições de 2018. Mas, como já disse Kleber Mendonça Filho em inúmeras coletivas, esse não um filme sobre o governo Jair Bolsonaro, e sim sobre problemas crônicos do Brasil, país que não consegue se desprender das raízes coloniais. Com final apoteótico e de prender o fôlego, Bacurau é um conto épico sobre o Sertão, uma Canudos futurística que expõe, como carne viva na janela, as nossas diferenças regionais, sociais, econômicas e políticas.

A seca, a falta de oportunidades, o desprezo são realidades que criaram uma resistência formidável no povo nordestino. Essa determinação não parte necessariamente de uma articulação, mas de um instinto. Essa rigidez não vem de fora, mas faz parte da nossa cultura, da nossa história - uma das cenas, ambientada no museu, evidencia bem isso. A mensagem que fica para quem assiste Bacurau hoje é que, mesmo com tantas desvantagens, o Nordeste é sim capaz de vencer o autoritarismo neofascista.