Experiência rara no cinema Com primor técnico e cotado a ganhar diversas estatuetas no Oscar, 1917 cria clima constante de correria, falta de ar e perigo

ANDRÉ SANTA ROSA
andre.rosa@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 23/01/2020 03:00

O filme 1917 é, em dois aspectos sobre a virtude e força necessárias para completar uma árdua missão. O primeiro diz respeito à diegese, a missão homérica dada aos soldados. Ao mesmo tempo, é impossível se prender apenas ao narrativo quando existe uma excelência técnica por trás: a obra de Sam Mendes foi toda filmada e montada para parecer um único longo plano sequência. Aqui a técnica não aparece como enfeite ou superficialidade, mas se acopla à narrativa e cria um clima constante de correria, falta de ar e perigo - elementos justos para descrever um filme que retrata os horrores da guerra.

A história é simples e de certa forma já vimos muitas missões impossíveis de guerra. Esse gênero fílmico se tornou um cacoete norte-americano, sempre como um pretexto para montar um playground de homens heroicos e armados. No caso de 1917, não há glamour e o que há de heroísmo se perde na grandeza do caos. A história fala sobre dois soldados britânicos, Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-

Charles Chapman). Após a descoberta de uma armadilha que mataria um batalhão de 1,6 mil soldados, inclusive o irmão de Blake, os jovens cabos ficam encarregados de atravessar o território inimigo para alerta de armadilha e impedir o avanço das tropas.

Pelo jeito como é filmado e editado, o longa rememora ao espectador muito mais da experiência do videogame, em jogos como Call of duty ou Battlefield, do que outros filmes - desde que deixemos de lado a relação de proatividade e intervenção existente nos jogos. Mas a sensação de continuidade, relação espacial e o que a câmera nos mostra permitem esse paralelo, o mesmo se pensarmos na progressão com que os personagens se movem e interagem com o espaço. Em 1917, somos transportados para paisagens pós-apocalípticas: lama, árvores caídas e corpos espalhados. Os intermináveis campos desolados remontam uma atmosfera sombria e visceral, que é explorada a partir dos recursos da câmera, sempre contrastando a pequenez e vulnerabilidade dos corpos dos soldados com o ambiente.

O longa 1917 é sobre entrega. Mas de certa maneira se apoia em um fazer arte que pode ser chamado de virtuoso. O que para muitos pode ser antiquado, certamente terá apelo para alguns membros da Academia, premiação da qual o filme, indicado em dez categorias, tem caminho pavimentado para as mais técnicas. A obra foi vencedora como filme de drama, direção e fotografia no Globo de Ouro e se consagrou também na premiação do Sindicato dos Produtores. Vale ressaltar que não só da direção de Sam Mendes vive 1917, mas também do trabalho de fotografia do grande Roger Deakins, que ganhou o Oscar por Blade runner 2049, em 2018, depois de bater na trave 13 vezes.

Ao fim do filme, Mendes agradece ao avô, que participou da Primeira Guerra Mundial e contou a história. Com um making off viral na internet, a campanha de divulgação do longa se baseia muito nos seus artifícios técnicos, o que, em geral, não é necessariamente sinônimo de qualidade. Neste caso, no entanto, fica difícil negar o triunfo da técnica e seus efeitos.

Outra estreia

Indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante, Tom Hanks está estupendo em Um lindo dia na vizinhança, dirigido por Marielle Heller, outra grande estreia de hoje dos cinemas. Ele interpreta um personagem real, Fred Rogers, o Mr. Rogers, famoso apresentador de TV de programa voltado ao público infantil, do qual meninos americanos cresceram assistindo. O longa não se trata de cinebiografia. Embora mostre Rogers gravando programas e um pouco de seu dia a dia, o foco não está nele. O personagem central é um repórter, interpretado com intensidade por Matthew Rhys, da série The americans. Uma das estrelas do jornalismo investigativo, Lloyd Vogel é repórter da revista Esquire e consegue grandes matérias. Parte para cima dos entrevistados. Tanta agressividade acaba trazendo problemas. Como praticamente nenhum entrevistado aceita mais receber Vogel, sua editora dá a ele uma pauta tranquila. Ao receber a tarefa de fazer um perfil de Rogers, ele fica inconformado, mas é obrigado a ir. E tudo muda a partir daí.

Novidade

Está no material de 1917 que a Universal distribuiu à imprensa: “Que fique bem claro que 1917 não  foi filmado com uma tomada só, mas com uma série de tomadas longas sem cortes que puderam ser  ligadas de uma forma natural que dão a impressão de ser uma tomada contínua. Como não há cortes nas cenas, o espectador, assim como os dois soldados protagonistas, não tem a chance de se desconectar da missão que tem à sua frente. Embora Sam Mendes tenha feito a cena de abertura de 007 contra Spectre em tomada contínua, fazer um filme inteiro dessa maneira foi uma experiência nova para todos, inclusive o diretor. Ele diz: “Nunca me vi em uma situação em que começássemos a filmar na segunda-feira e eu tivesse certeza absoluta de que o material filmado na segunda-feira seria usado no filme.”