Brega-funk no topo... ok! Ritmo pernambucano emplacou três músicas entre as 10 mais ouvidas do carnaval, em ranking divulgado pelo Spotify, e três videoclipes entre os cinco mais assistidos no YouTube

EMANNUEL BENTO
emannuel.bento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 28/02/2020 03:00

Três faixas do brega-funk, ritmo que surgiu nas periferias de Pernambuco, estão entre as dez músicas mais ouvidas do Brasil durante o carnaval no Spotify, plataforma de streaming musical mais popular do mundo. Tudo ok, de Thiaguinho MT e Mila (1º), Sentadão, de Pedro Sampaio e Felipe Original (3º), e Surtada, de Dadá Boladão, OIK e Tati Zaqui (7º), foram produzidas pelo pernambucano Jhonatan Ramos dos Santos, o JS, o Mão de Ouro, um apelido que revela o seu poder de “Midas”, pois todas as suas produções costumam alcançar popularidade. Na lista divulgada pelo YouTube, Tudo ok também aparece em primeiro, seguida por Sentadão (2º) e Te prometo (5º), de Dennis DJ e MC Don Juan. Mas como o brega-funk, que surgiu há dez anos com produções musicais caseiras e videoclipes de baixo orçamento, conseguiu um status de “ritmo de carnaval” em 2020? A explicação está nas transformações proporcionadas pela cultura digital.

No começo da década de 2000, existia um circuito de funk recifense que incitava rixas entre comunidades da cidade. Foram os “bailes de galera”, descobertos pela imprensa em uma série de reportagens de Marcionila Teixeira, do Diario, em 2004. A Polícia Militar fechou as casas de shows e o movimento ruiu. A união de batidas eletrônicas do funk com o baixo e a latinidade do brega começou a ser feita em estúdios da periferia do Recife nessa época, como uma espécie de estratégia para os MCs continuarem as carreiras.

Já naquela época, as faixas do brega-funk circulavam por plataformas como YouTube, Palco MP3 e 4Shared, adquirindo alta popularidade. Nomes como Sheldon, Cego, Tocha, Dadá Boladão e Tróia se tornaram celebridades locais, com alguns movimentos tímidos de expansão para outros estados, sempre ligados às regravações de grandes nomes do forró. A primeira vez que o ritmo teve alcance nacional na mídia foi em 2018, com Envolvimento, de Loma e as Gêmeas, que viralizou com um vídeo caseiro no YouTube. Desde então, o processo de nacionalização tem se intensificado.

Simone Pereira de Sá, pesquisadora e professora da Universidade Federal Fluminense, argumenta que o acesso das classes C e D aos computadores e celulares na década de 2000, fruto do estímulo ao consumo na era petista, revolucionaram a música periférica com o barateamento de estúdios portáteis, trocas de arquivos digitais e maior visibilidade de produções em circuitos autônomos. “As plataformas digitais são fundamentais para reconfigurar a cultura da música por permitirem a circulação de gêneros musicais que não tinham acesso ao mainstream”, explica Simone. “Apesar das críticas que podemos fazer a uma certa opacidade do modelo de algoritmos, é fato que os gêneros periféricos se beneficiaram deste modelo descentralizado para construir redes locais e divulgar conteúdo que jamais circularia nos meios tradicionais, como televisão ou rádio”, continua.

A pesquisadora também desenvolveu o termo “rede de música pop periférica”, que descreve o fenômeno em que o consumo através do YouTube e do Spotify consegue criar hibridizações entre gêneros musicais já existentes. O brega-funk, ritmo acelerado e diversificado que vai sempre aderindo novas tendências ao longo dos anos, é um exemplo disso. “Além do brega-funk, que está em alta neste momento, foi a rede de música pop periférica que deu origem ao funk ostentação e ao passinho do Rio de Janeiro no começo desta década. Acho interessante que cada uma dessas misturas resulta de influências mútuas entre gêneros locais das periferias de cidades diferentes e constroem caminhos inusitados de circulação e troca, sem uma direção pré-determinada.”

Thiago Soares, professor da UFPE e autor do livro Ninguém é perfeito e a vida é assim: A música brega em Pernambuco (2017, Outros Críticos), explica que, assim como em qualquer indústria, o sistema de entretenimento está sempre procurando “a novidade”. “O processo de nacionalização do brega-funk começou em 2018, quando produtoras de São Paulo começaram a se apropriar do ritmo. O carnaval foi um momento de reiterar essa narrativa das novidades. O interesse do Sudeste, que protagoniza o poder econômico do Brasil, é uma das comprovações dessa nacionalização. Thiaguinho MT e Pedro Sampaio são cariocas, por exemplo. A desterritorialização é integrante de um processo histórico da relação dos gêneros musicais com o mainstream.”
 
Carnaval
 
Músicas mais ouvidas do carnaval no Spotify

BRASIL


Tudo ok
Thiaguinho MT, Mila e JS, o Mão de Ouro

Liberdade provisória
Henrique & Juliano

Sentadão
Pedro Sampaio, Felipe Original e JS, o Mão de Ouro

Vem me satisfazer
DJ Henrique da VK e MC Ingryd

Combatchy
Anitta, Lexa, Luísa Sonza e MC Rebecca

A gente fez amor
Gusttavo Lima

Surtada (remix brega-funk)
Dadá Boladão, OIK, Tati Zaqui

Graveto (ao vivo)
Marília Mendonça

S de saudade
Luíza & Maurílio, Zé Neto & Cristiano

Rave de favela
Anitta, MC Lan, Major Lazer

RECIFE

Sentadão
Pedro Sampaio, Felipe Original e JS, o Mão de Ouro

Tudo ok
Thiaguinho MT, Mila e JS, o Mão de Ouro

Te prometo
Dennis DJ e MC Don Juan

Surtada (remix brega-funk)
Dadá Boladão, OIK e Tati Zaqui

Amor de que
Pabllo Vittar

Liberdade provisória (ao vivo)
Henrique & Juliano

Vem me satisfazer
DJ Henrique da VK e MC Ingryd

Combatchy
Anitta, Lexa, Luísa Sonza e MC Rebecca

Contatinho (ao vivo)
Anitta e Leo Santana

Bota bota
10G, MC Losk, Mc Morena, Shevchenko e Elloco

Atualização

A principal questão, ainda sem resposta, é como o brega-funk vai se consolidar e se retroalimentar dentro dessa dinâmica. “Acredito que o processo de hibridização com outros gêneros vai se intensificar em relação às sonoridades, poéticas e danças”, opina Thiago Soares. “Já percebemos um brega-funk mais domesticado e com letras mais palatáveis. Se Léo Santana grava um brega-funk, estará ligado ao pagodão baiano. Se Anitta resolve incorporar, ela conversará mais com a música pop. E ao mesmo tempo em que o Brasil consome isso tudo, a cena do Recife começa a procurar outros elementos para se atualizar. É um movimento duplo. Existem artistas que estão unindo brega-funk ao trap, por exemplo. Também vemos cantores mais ativistas e MC mulheres com corpos menos sexualizados.”