CRÍTICA » Filme de Terrence Malick é manifesto de resistência

Publicação: 10/03/2020 03:00

A raridade da primeira etapa da obra de Terrence Malick, diretor que entre 1973 e 2005 filmou apenas quatro longas, consolidou a impressão de que ele seria um realizador único, cujos poucos filmes valeriam ouro. A intensificação da atividade do diretor na última década demonstrou, ao contrário, que sua estética metafísica se diluía em contato com a banalização.

Uma vida oculta, em cartaz no Cine Rosa e Silva, no bairro dos Aflitos, oferece os elementos para Malick retornar ao essencial, conjugando os dois extremos de sua visão de mundo: o cósmico e a consciência, a crença e a liberdade.

O filme retoma a história real do austríaco Franz Jägerstäter, que por objeção de consciência se recusou a participar das forças nazistas na Segunda Guerra. A desobediência foi julgada como traição, Jägerstäter foi condenado à morte e executado em 1943. Em 2007, a Igreja Católica o reconheceu como mártir.

Malick dispensa a obviedade da “história baseada em fatos” e, em contrapartida, ganha espaço para representar um drama de ressonâncias filosóficas. A longa duração do filme, por sua vez, permite ao cineasta aprofundar, a partir da bifurcação que separa Franz de sua esposa, Fani, os caminhos que contrapõem o mundo regulado pelos homens ao mundo no qual a natureza se impõe.

A escolha de uma representação espiritual em detrimento do realismo factual também se percebe no apagamento das marcas que definem dramas ambientados na Segunda Guerra. Aqui, não há tiros, nem bombardeios e a guerra só se revela na forma de medos e da transformação dos valores.

Malick recupera a aura de seus grandes trabalhos, como Além da linha vermelha (1998) e O novo mundo (2005), nos quais as relações entre indivíduo e natureza oscilavam entre o diálogo e o pertencimento. Fora dali, nos espaços exclusivamente humanos das prisões e tribunais, essa integração desaparece e surgem relações de abuso, dominação e sujeição. (Folhapress)