Quase um século de cinema no estado O recém-lançado livro Antologia da crítica pernambucana analisa os discursos sobre cinema na imprensa, com um recorte de 1924 a 1948

EMANNUEL BENTO
emannuel.bento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 04/04/2020 03:00

O cinema pernambucano se encontra numa interessante aurora, com títulos exibidos e premiados em todo o mundo. O que muitos não sabem é que o estado produz cinema há quase um século. Sempre contribuindo com o âmbito da memória, a imprensa registrou o surgimento de cadeias produtivas, a repercussão dos filmes e as controvérsias surgidas a partir dessas obras. Resgatar esses textos, criando um panorama dos principais autores e ideias, é o mote do livro Antologia da crítica pernambucana - Discursos sobre cinema na imprensa (1924 - 1948), organizado por André Dib e Gabi Saegesser. O projeto foi aceito pelo Funcultura, contou com apoio da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) e agora chega ao mercado editorial pela Companhia Editora de Pernambuco, com 387 páginas. As vendas é pelo site www.cepe.com.br, por R$ 45.

Após um processo de imersão em acervos, bibliotecas, arquivos públicos e particulares, os pesquisadores conseguiram mapear a origem e o trajeto da crônica e da crítica cinematográfica em Pernambuco, captando o imaginário sociocultural da época e instigando novos caminhos para mais estudos na área. “Nossa intenção era cobrir até os anos 1970, mas vimos que o volume era muito grande. Também tomamos conhecimento de um livro da Luciana Correia Araújo sobre escritos nos anos 1950, então resolvemos abarcar o período 1924-1948, estando atentos a episódios importantes para a história do cinema mundial e local”, diz Gabi. Além do Diario de Pernambuco e do Jornal do Commercio, também constam publicações extintas como A Província, Jornal do Recife, Diário da Manhã, O Gymnásio, entre outras. Os pesquisadores também consultaram livros dos pernambucanos Alexandre Figueiroa, Paulinho Cunha e Rodrigo Carreiro.

O primeiro capítulo é dedicado ao período produtivo hoje conhecido como Ciclo do Recife, que realizou 13 longas-metragens entre 1923 e 1931, com destaque para A filha do advogado, de Jota Soares, e Aitaré da praia, de Gentil Roiz. “Os escritos da década de 1920 são bastante entusiastas, pois além das novidades tecnológicas, existia um fascínio sobre a possibilidade de ver a própria cidade no cinema. Também era comum que os próprios realizadores escrevessem sobre os filmes”, conta Gabi. Já nessa primeira fase, é possível mapear nome de cronistas como Heloísa Chagas, Alcantara Matos, Danilo Torreão e até Josué de Castro, mais conhecido pelo trabalho como sociólogo e geógrafo.

No segundo capítulo, a crônica cinematográfica começa a se profissionalizar e abre caminho para a tradição cinéfila em Pernambuco, quando o cinema falado (os talkies, como se dizia na época) começava a tomar o mercado. Os principais nomes foram Evaldo Coutinho e Nehemias Gueiros, que teciam críticas a filmes isolados e ao próprio circuito exibidor, além de panoramas sobre o cinema produzido no exterior. “Nessa época, surgem controvérsias, como uma disputa de valor entre cinema mudo e cinema falado, entre outros embates em torno da modernização. Nehemias, por exemplo, era um superdefensor dos talkies”, pontua Saegesser.

Em 1942, o cineasta Orson Welles, diretor do clássico Cidadão Kane (1941), veio realizar filmagens no Brasil para o filme É tudo verdade. Em viagens entre o Rio de Janeiro e Fortaleza, ele se hospedou no Recife duas vezes, quando concedeu entrevistas para a imprensa local. Esse episódio curioso configura o terceiro capítulo da Antologia. O quarto e último diz respeito a Coelho sai (1942), o primeiro longa-metragem de ficção sonoro de Pernambuco - algumas fontes o creditam como primeiro do Nordeste.

Nos anexos, é possível encontrar material iconográfico e os registros das primeiras exibições no estado. Em 7 de novembro de 1909, por exemplo, o Diario de Pernambuco cobriu a inauguração do Cinema Royal. “Com o novo estabelecimento e o Pathé no Recife, a população já encontra, comodamente, locais oferecendo instrutivas diversões, concorrendo para dar um tom de alegria e movimentação à bela Veneza, ainda tão pobre de distrações desse gênero”, diz o jornal.

“Por que olhar para textos que foram escritos há 100 anos, quando o jornal de ontem já tem notícia considerada velha? É mais do que uma curiosidade ou interesse de apenas pesquisadores. Eu vejo como um início da formação de um imaginário sobre o cinema, essa arte que continua pautando discussões nacionais e nos fazer entender o momento de hoje”, diz o jornalista André Dib, que trabalhou no Diario entre 2004 e 2012, como crítico de cinema em maior parte.

Observando uma linha do tempo maior da crítica, André Dib afirma que podemos elencar o período do livro como a fase anterior ao que se chama de crítica moderna. “Foi nesse tempo que se maturou a ideia de crítico que temos hoje. Quando um estudante produz um texto sobre filme, ele está sendo influenciado pelo que já leu, por conta do imaginário. Ainda se discute a vitalidade, a legitimidade de produtos. Por exemplo, se vale a pena ou não assistir O irlandês, de Martin Scorsese, ou Roma, de Alfonso Cuarón. Ou se assistir filmes na tela do celular ocasiona uma perda da magia do cinema. As questões tecnológicas, que antes diziam respeito a existência de som ou cores, continuam mobilizando as discussões cinematográficas.”