O escapismo pop para um mundo em ruínas Chromatica, novo álbum de Lady Gaga, resgata o conceito de disco temático, num passeio da cantora por um universo pós-apocalíptico

EMANNUEL BENTO
emannuel.bento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 30/05/2020 03:00

Mentalize um herói entrando em uma nave e decolando rumo ao espaço. Entre bilhões de estrelas coloridas existe um novo mundo, que por sua vez simboliza uma esperança. A cena sci-fi serve para começar a entender Chromatica, sexto álbum de estúdio da estadunidense Lady Gaga, lançado na sexta-feira. Enquanto as crises sanitária, econômica e política ameaçam o mundo, a cantora oferece aos ouvintes uma obra em que a música pop, em casamento com uma estética visual pós-apocalíptica, se torna uma ferramenta de escapismo. A sonoridade do projeto passeia pelas pistas das décadas 1980 e 1990, com disco, europop e house music costurados em uma linguagem pop contemporânea, possibilitada em parte pelo produtor Bloodpop.

Lady Gaga já apostava em música dançante, eletrônica e cheias de referências vintages em sua chegada à indústria. Inicialmente, apostou em temáticas menos engajadas, mas com interessantes reflexões sobre a cultura de celebridades (The fame, 2008). Apostou num lado mais bizarro (The fame monster, 2009) e se tornou porta-

voz da autoaceitação, fortalecendo uma geração de jovens (Born this way, 2011). A carreira passou por esgotamentos de fórmulas (ARTPOP, 2013), o que estimulou experimentações com o jazz (Cheek to cheek, 2014) e flertes com o country (Joanne, 2016). A cantora ainda ganhou o Oscar de Melhor Canção Original pela trilha sonora de Nasce uma estrela (2018).

Eis que chegamos no derradeiro ano de 2020. Chromatica é o primeiro álbum assumidamente pop da cantora em sete anos. Nesse intervalo, o streaming se fortaleceu e as redes sociais se consolidaram como baluartes da “emoção pública” - termo do pesquisador Vincenzo Susca que sugere que a tradicional ideia de opinião pública vem sendo fragilizada por sentimentos coletivos na internet. Gaga ainda não havia lançado um projeto pop nesse contexto, então a expectativa em torno do disco era como uma “prova de fogo”. Ela superou o obstáculo por entregar um projeto essencialmente comercial e esteticamente coeso, com musicalidades arrojadas e letras pontuais sobre fragilidades e ânsia por liberdade.

A era do streaming - embora não seja regra - tem estimulado faixas cada vez mais curtas, dispersas e perambulantes por playlists. Chromatica resgata o conceito do álbum temático, fórmula da música pop gestada desde o Sgt Pepper's lonely hearts club band (1967), dos Beatles. O disco tenta provocar uma imersão no planeta homônimo, com começo, meio e fim. A narrativa é dividida em três partes por “intervalos” de música clássica, que lembram trilhas sonoras. O disco também carrega tradições do “non-stop”, em que algumas músicas se conectam entre as transições. “Por favor, escutem do começo ao fim, não precisa colocar no aleatório. Essa é a minha verdadeira história”, pediu a cantora no Twitter.

O imaginário sci-fi é escancarado em Alice, que abre o disco. Gaga desabafa sobre sua necessidade por escapismo, como o ouvinte que vive mais um dia da quarentena. “De saco cheio e cansada de acordar / Gritando a plenos pulmões / Pensando que devo ter me deixado para trás”, canta.

Rain on me, com Ariana Grande, é um hino de positividade para as pistas. As colaborações, inclusive, são certeiras. Com Ariana, a cantora flerta com um público mais jovem que não acompanhou muito bem o seu ápice - entre 2009 e 2012. Gaga se aproxima do imenso fandom do k-pop ao colaborar com o fenômeno coreano BLACKPINK em Sour candy, uma divertida house music. Sine from above, com Elton John, também foge do senso comum por não ser uma balada de piano. Lady Gaga leva o septuagenário para a boate em uma música celestialmente eletrônica. “Quando eu era jovem, eu me sentia imortal / E nem um dia se passou sem uma luta / Eu vivi meus dias apenas pelas noites”, canta Elton.

Na faixa 911, a cantora desabafa sobre a sua relação com os antipsicóticos, entre vozes robóticas e sintetizadores frenéticos. Free women e Plastic doll são faixas sobre liberdade. “O que estou vendo é real, ou é apenas um sinal? / É tudo virtual? / Nós poderíamos ser amantes, mesmo que por esta noite / Poderíamos ser qualquer coisa que você quisesse”, canta Gaga, em um nítido zeitgeist, na forte Enigma. Nesse caldeirão tecnológico, Babylon é o refúgio para a cultura ballroom, evocando clubes recheados de voguing e drag queens.

Com tantos convites para dançar, é paradoxal que o Chromatica chegue ao público quando parte considerável do Ocidente ainda se encontra em isolamento social devido à pandemia do coronavírus. Ao se tornar um álbum para ouvir em casa, essa experiência eletrônica é ressignificada. O processo de colocar fones de ouvido, fechar os olhos, sentir as batidas sintéticas e imaginar a pista de dança pode ser um procedimento para mentalizar a volta da normalidade com menos aflição. É um ritual semelhante ao daquele herói que entrou em uma nave espacial rumo a um novo mundo.