Para traduzir o nosso tempo Expresso do amanhã, série da Netflix adaptada de longa-metragem do diretor de Parasita, mostra o caos da sobrevivência humana após a devastação do planeta

MARIANA PEIXOTO
Do Estado de Minas

Publicação: 26/05/2020 03:00

Não poderia haver momento mais favorável para a estreia da série Expresso do amanhã, produção em 10 episódios que a Netflix lançou ontem - dois novos serão lançados a cada semana. A distopia reimagina um mundo confinado, em que os 3 mil sobreviventes de um apocalipse climático na Terra vivem em um trem que roda o planeta sem parar. Mais: traz como chamariz o cineasta mais falado deste ano e do anterior. O sul-coreano Bong Joon-ho, de Parasita, grande vencedor do Oscar 2020, é um dos produtores-executivos da série, desenvolvida a partir de seu filme homônimo, lançado em 2013. Expresso do amanhã é o primeiro longa-metragem de Joon-ho falado em inglês.

Série e filme têm como ponto de partida uma célebre graphic novel francesa, O perfuraneve (1984), da dupla Jacques Lob e Jean-Marc Rochette. A Editora Aleph publicou em 2015 uma edição completa dessa narrativa, incluindo a inicial e suas duas sequências - O explorador (1999) e A travessia (2000) -, essas duas de autoria do francês Benjamin Legrand.

Ainda que mudem o formato e o tratamento, a gênese da narrativa é a mesma. Perfuraneve em português, Snowpiercer em inglês, é um trem com 1.001 vagões (16 quilômetros de comprimento) que parte de Chicago para tentar salvar a humanidade. Ele roda o globo sem paradas - caso deixe de se movimentar, será dominado pelo gelo que consumiu a Terra após um desastre ambiental. Só que, para que a experiência seja bem-sucedida, lei, ordem, hierarquia, divisão social, nada pode estar fora do lugar.

O responsável pela série é Graeme Manson, mais conhecido por outro drama sci-fi, Orphan black (2013-2017). Para ganhar o formato serial, a narrativa original desenvolveu subtramas e nuances novelescas. O elenco é encabeçado por Jennifer Connelly, em ótimo momento como uma mulher competente e machucada, e Daveed Diggs, ator, rapper e produtor mais conhecido pelo musical Hamilton, da Broadway, que lhe rendeu um Tony e um Grammy. A dupla reprisa os papéis que foram no cinema de Tilda Swinton e Chris Evans.

No trem, os dois têm função semelhante, mas totalmente oposta. Connelly é Melanie Cavill, braço direito do Sr. Wilford, o empresário visionário que criou o Snowpiercer para salvar a humanidade. É a voz de Melanie que ecoa diariamente nos 1.001 vagões, ditando o dia e o horário, e as novidades. Ninguém vê o Sr. Wilford, tudo vem diretamente de sua porta-voz.

Com a voz suave, porém determinada, Melanie comanda os passageiros da primeira, segunda e terceira classes. As duas primeiras são ocupadas por pessoas que compraram passagens. A terceira, pelos trabalhadores que fazem a máquina funcionar, seja labutando na agricultura ou na pecuária (sim, o mundo lá fora cabe no Snowpiercer).

É no fundo, literalmente, que reside o problema, pelo menos aos olhos dos ocupantes das classes superiores. Quando o trem deixou a estação de Chicago, centenas de pessoas tentaram embarcar à força. Muitas não sobreviveram à ferocidade dos soldados. Mas 400 continuam ali, passados sete anos do embarque e a despeito das doenças, do frio, da fome. Não são a quarta classe, são os “fundistas”.

Não precisa ser um expert na obra de Boon Joon-ho para entender o que fascinou o cineasta. O abismo social, tema central da obra do sul-coreano, é o que move Expresso do amanhã. Se o filme trata de forma alegórica (e violenta) da relação daqueles que têm e daqueles que não têm, a série traz menos sutilezas.