"O rap sempre foi protesto, por isso incomoda" Com 30 anos de carreira, o músico pernambucano Zé Brown fala de repressão e preconceito nos tempos da icônica banda Faces do Subúrbio e como enxerga a situação atual

EMANNUEL BENTO
emannuel.bento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 06/06/2020 03:00

“De novo a justiça é feita / Cinco homens armados com fuzil e escopeta / Cercam o negro na calada da noite / O mataram assim que acabou o açoite”. Os versos da canção Homem fardado, faixa do primeiro álbum do grupo de rap pernambucano Faces do Subúrbio, acabaram resultando em uma noite de pânico em 1998. Durante um festival no Parque de Exposições do Cordeiro, na Zona Oeste do Recife, os artistas não conseguiram chegar ao primeiro refrão da canção. Policiais indignados com o teor denunciativo da letra - e também com a “roda punk” formada pelo público - interromperam o show.

A cultura hip hop dava seus primeiros passos no Recife, em meio à efervescência do manguebeat, denunciando a violência policial vivida na periferia. “Fomos obrigados a parar. Seguimos para o camarim, de lá nos levaram para a delegacia. No caminho, sofremos agressões com cassetetes nas costas, beliscões e muitas ameaças verbais. Muitas mesmo”, relembra o vocalista Zé Brown, 46, com recém-completados 30 anos de carreira. “Nossos advogados disseram que era liberdade de expressão. Um tenente ainda insistiu que tínhamos passado do limite.”

Figura central para compreender esse período em Pernambuco, Zé Brown acredita que o retorno às raízes é essencial para entendermos a atual atmosfera social do mundo, quando protestos antirracistas eclodem após a morte do afro-americano George Floyd. “O hip hop sempre teve um efeito devastador de mudanças, mas também para apaziguar a guerra entre jovens. Ele chegou primeiro onde não existia atenção social por uma necessidade de tentar criar uma sociedade mais igualitária. Nos Estados Unidos hoje, você vê os caras indo para as frentes das instituições cantando Tupac, entre outros. O rap sempre foi protesto, por isso incomoda. O rap entra na veia da população, passa pelo cérebro e atinge o coração”, diz.

Zé Brown teve criação em Nazaré da Mata, terra de maracatu, repente de viola, embolada e literatura de cordel. Ao se mudar para o Alto José do Pinho, na periferia urbana da Zona Norte da capital, conheceu “um tal de breakdance” em ensaios na Praça do Trabalho, em Casa Amarela. Influenciado por nomes paulistas como MC Jack, Os Metralhas e Som das Ruas, ele fundou com amigos o The Boys of Rap, que depois passou a se chamar Faces do Subúrbio. Brown dividiu os vocais com Tiger, e a primeira formação tinha ainda Ony (guitarra), Marcelo Massacre (contrabaixo), Garnizé (bateria) e DJ KSB.

“No começo dos anos 1990, tinham muitos eventos no Alto José do Pinho, com Devotos, Flores Negras, Terceiro Mundo, entre outras bandas que abriram um espaço. Existiam grupos de rap como Sistema X, Vírus do Preconceito, Código de Rua, os DJs Ló, Spider Taubaté. Foi nesse contexto que surgimos. Sofremos preconceito na cena porque diziam que rap com banda não era rap, mas sim rock”, relembra.

Após viagens a São Paulo em 1994 (edição especial do Rec-Beat) e 1995 (300 anos de Zumbi, com Racionais MC’s), o grupo gravou uma “fita” chamada Não somos marginais, em 1996. O conteúdo repercutiu bem em revistas de música especializadas e saiu como CD independente com apoio do Funcultura no ano seguinte. O rap, nascido nos EUA, ganhava um registro nitidamente de Pernambuco, com citações às comunidades locais e influência da cultura popular do estado. Finalmente intitulado Faces do Subúrbio (1998), o álbum teve distribuição ampla pelo selo MSK e se tornou uma espécie de Sobrevivendo no inferno pernambucano - uma comparação ao clássico disco dos Racionais, de 1997. O projeto seguinte, Como é triste olhar (2000), foi indicado ao Grammy Latino como Melhor Álbum de Rap.

“O rap era uma coisa restrita, poucos entendiam a proposta. Era difícil explicar que era algo que veio do Brooklin. A internet causou uma revolução, ajudou muito a divulgar para outros ambientes. Hoje existe o trap, que está estourado. Mas tem um lado triste, pois pouquíssimos conhecem os nomes da velha escola. Quem são Código Treze, Paulo Break, Nelson de Triunfo? Boa camada dessa nova geração não procura a raiz”, desabafa. “Também existe a cultura de MC de brega-funk. Eu gosto muito do ritmo, mas condeno as letras. Os caras estão ganhando dinheiro, mas também acho tudo uma loucura. Ninguém tá percebendo o que tá ocorrendo ali, o que vai ser daqui há 10 anos.”

O Faces do Subúrbio se diluiu no final dos anos 2000, apesar de ter voltado com o EP Onde há fumaça há fogo em 2018. Zé Brown lançou o primeiro álbum solo em 2011, Rap repente, com forte inspiração popular, seguido por Poesias do povo (2018), mais eletrônico. Hoje, ele trabalha como arte-educador no Instituto Cultural Educacional Matéria Rima, em São Paulo, onde ensina uma proposta educacional com  embolada, rap e pandeiro. No contexto da pandemia, ele voltou ao Alto José do Pinho, onde produz novas composições.

O coronavírus, aliás, atrasou o lançamento de um single de Brown com participação do carioca Marcelo D2. Será uma homenagem a Jackson do Pandeiro. “Assinei com a produtora Atração Fonográfica (SP), que entendeu muito bem a proposta do meu trabalho. A minha carreira tem uma simbologia elegante e de respeito, apesar do preconceito do começo. Eu já fui ajudante de pedreiro, camelô na Dantas Barreto e fiz curso de cabeleireiro enquanto a música não garantia todo o sustento. Fico feliz ao ser convidado para propagandas sobre Recife na TV, virar boneco gigante de Olinda, a própria indicação ao Grammy. São conquistas, né? Não me arrependo de ter apostado nessa vida ainda no Recife de 1990”, finaliza.