Contra a intolerância e a repressão policial

Publicação: 04/07/2020 03:00

Oito anos após a fundação, o Terreiro Xambá foi alvo de uma violenta repressão. Policiais levaram imagens, objetos sagrados e conduziram a ialorixá para prestar depoimento na delegacia. Era 1938, o Brasil vivia a Era Vargas, sob a constituição de 1937, onde a liberdade religiosa previa manter “ordem pública e bons costumes”. Após o fechamento, o culto aos orixás seguiu, mas a portas fechadas. O espaço foi reaberto mais uma vez no bairro de Santa Clara, hoje Água Fria. No ano seguinte, fincou raízes onde funciona a atual sede. Ele foi o único terreiro da tradição xambá que resistiu após a forte intolerância religiosa da década de 1930. Os demais se fundiram ou deixaram de existir. O episódio traumático é contado pela jornalista Marileide Alves no livro Povo xambá resiste - 80 anos de repressão aos terreiros em Pernambuco (Cepe Editora, 2018).

O atual babalorixá Adeildo Paraíso da Silva, conhecido como Ivo de Xambá, lembra que, durante as perseguições policiais, escondia-se embaixo da cama. “O terreiro era na minha casa, então eu já precisei me esconder embaixo da cama. E todo mês Mãe Biu tinha que pedir autorização na delegacia para continuar funcionando.”

Para Ivo, é através da religiosidade que o povo negro se empodera. “É a partir da religião que se faz cultura, que se desenvolvem ações sociais. Nosso povo cresceu e se desenvolveu assim. Mas por que se aceita nossa cultura, mas não aceita nossa religião?”, questiona.

LEGADO MATRIARCAL

Xambá é um dos mais importantes núcleos de preservação das expressões culturais de origem africana no Brasil, sendo amplamente conhecido pelo forte trabalho cultural, principalmente com a sua música ancestral para os orixás, mestres do culto da jurema, coco de roda e música contemporânea. A origem do terreiro, seus membros e suas conquistas recentes, como o Memorial Severina Paraíso da Silva e o grupo Bongar, se entrelaçam à trajetória de luta, fé e liderança de mulheres importantes, como a ialorixá Maria Oyá, fundadora do terreiro, e Mãe Biu, que o dirigiu por 54 anos. Hoje é cuidado de perto pelas yabás, como Dona Glória. “Sempre que vou ao terreiro, procuro organizar o que vai ser feito naquele dia. É sempre assim, se tem filhos de santo lá, nós (yabás) vamos conversar. Somos responsáveis pelo preparo das obrigações, dos rituais, cuidamos da casa, trocamos as cortinas e providenciamos as comidas”, explica Dona Glória.

O mungunzá, prato típico e sagrado nos encontros, é preparado por ela e pelas demais yabás. “Já vamos ensinando as mulheres, como as minhas netas, que vão se tornando yabás. Essa resistência que nós temos, as mulheres negras da Xambá, é muito forte”, pontua. Dona Glória é uma das grandes incentivadoras da manutenção do coco de roda entre os mais jovens e agora, nesse período de pandemia, sente os reflexos da ausência dos encontros. “Não estamos fazendo as festas, nem os toques no momento. As crianças perguntam, cobram... Nós sentimos a necessidade, mas vamos levando como dá.”

Apesar do decreto estadual que permite a abertura de igrejas, templos religiosos e terreiros, o Xambá não deve retomar o funcionamento no momento. “São muitas restrições, inclusive de idade. E a maioria das pessoas do terreiro são maiores de 60 anos. Também temos muitas crianças, então não vamos abrir enquanto não tiver uma vacina segura. Por ora, só estamos fazendo oferendas para orixás, que são feitas só pelos filhos de santo da casa.”