Resistir para existir Um dos mais importantes núcleos de preservação da ancestralidade africana no Brasil, o Terreiro Xambá, com 90 anos de existência precisa de ajuda

JULIANA AGUIAR
juliana.aguiar@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 04/07/2020 03:00

Foi trocando passos de coco de roda que os pequenos moradores do bairro de Campo Grande, na Zona Norte do Recife, começaram a se familiarizar com a cultura e as tradições da nação xambá repassadas pelos pais e avós. Impregnado nas tradições orais das práticas, cantigas, roupas e músicas, o que viria a ser o Terreiro Xambá foi fundado ali, no dia 7 de junho de 1930, pela ialorixá Maria Oyá e pelo babalorixá Artur Rosendo Pereira, que se estabeleceu no local após fugir da repressão policial sofrida pelas casas de culto afrobrasileiro em Alagoas. No último mês, o terreiro, que carrega as raízes do povo xambá, originário da região ao norte dos Ashanti e limites da Nigéria com Camarões, celebrou 90 anos.

Para marcar a data, foi lançada uma campanha de financiamento coletivo para reformar a estrutura física da casa, localizada há anos no bairro de São Benedito, em Olinda, onde são realizados os encontros religiosos e culturais. Em maio, fortes chuvas abalaram o casarão da década de 1950. As doações, a partir de R$ 20, podem ser realizadas através da plataforma Abacashi (abacashi.com/p/reforma-terreiroxamba). Para cada valor, há uma recompensa, entre discos, ilustrações, oficinas e ingressos para shows do Grupo Bongar. O risco de desabamento ameaça as permanentes práticas religiosas e a visitação às ações socioculturais e educativas promovidas pela comunidade. Muitas delas, inclusive, são base de sustentação financeira dos moradores e artistas da Xambá e estão paralisadas devido à pandemia.

De forma recreativa, a musicalidade e o coco de roda ajudaram a consolidar a nação xambá em Pernambuco a partir da união e troca entre as diferentes gerações. Era festa, diversão e celebração. Em 1958, ganhou caráter de resistência quando passou a ser usado para disfarçar os rituais religiosos que aconteciam dentro dos terreiros, como forma de se proteger da repressão e perseguição da época. Em 1964, a ialorixá Mãe Biu fez a festa de aniversário de 50 anos sem a roda de coco. No lugar, colocou uma radiola para tocar. Nesse dia, uma mulher faleceu ao sofrer um acidente a caminho da festa.

A tragédia levou Mãe Biu a prometer sempre fazer uma festa de coco no dia 29 de junho. “A partir daquele dia, há 55 anos, celebramos o coco da Xambá aqui em nosso espaço. A prática deixou de ser uma brincadeira e ganhou data específica para ser celebrada”, conta Guitinho da Xambá, responsável pelo Centro Cultural Grupo Bongar, situado nos entornos do terreiro. Mesmo após o falecimento de Mãe Biu, em 1993, a tradição segue mantida.

O coco de roda consta no calendário festivo de Olinda. Atrai frequentadores de todas as regiões brasileiras e de vários países. Neste ano, por conta do coronavírus, a 55ª edição do evento não aconteceu.

Xambá extrapolou as barreiras do terreiro. Criou raízes por toda a região, ocupou vias com desfiles e apresentações culturais, praças com contações de histórias e espaços públicos com cocos de roda. Xambá se fez quilombo urbano, denominado Portão do Gelo, expandiu-se por ruas e vias. Deu nome até para integração de transporte público. “Eu sempre vivi aqui em torno da Xambá, vivenciando cultura popular. Isso me fez criar o Grupo Bongar”, conta Guitinho.

Fundado em 2001, o grupo vai além da música e atua como instrumento social, formando jovens e combatendo o racismo institucional. “Com o Bongar, a gente fez da nossa música, o coco, um instrumento de transformação social. Uma arte promovida por núcleos negros e familiares”, afirma. Em 2016, foi inaugurado o Centro Cultural Grupo Bongar. Lá, são realizadas oficinas de percussão e dança popular, formações de audiovisual para jovens, aulas de capoeira, confecção de instrumentos, aulas-espetáculos, culinária de terreiro e palestras. Além do Bongar, foram formados outros três grupos musicais: Xamba das Yabás; Pirão Bateu, com jovens que mesclam instrumentos tradicionais e utensílios domésticos; e o Mixidinho, criado pela geração mais nova, com menos de 10 anos.

Impulsionado pelo Bongar, foi criado em 2002 o Memorial Severina Paraíso da Silva, onde estão reunidos objetos, documentos, indumentárias, fotos e artigos de jornais e revistas que preservam e divulgam a história do povo xambá. Outra forma de conservar a memória é a brincadeira do Boi Quebra Coco. Uma vez por mês, o boi visita uma casa da comunidade e escuta a história do morador sobre a origem de sua família, a formação do bairro e sua infância naquele local. Nas quartas-feiras, moradores e educadores se reúnem na Praça Tio Luiz para debater cultura africana.