É ilegal, imoral ou democrático? Mesmo na era do streaming, em 2019, a pirataria voltou a crescer, trazendo novamente à tona o antigo debate sobre direitos autorais e acesso democrático

ANDRÉ SANTA ROSA
andre.rosa@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 24/08/2020 03:00

Quando os serviços de streaming chegaram no país, antes de todos a Netflix em 2011, muitos acreditavam que seria “a última pá de cal” na pirataria. De fato, os carrinhos de som e os DVDs dos últimos lançamentos em capas desbotadas se tornaram uma espécie em extinção nas capitais brasileiras. Mas ainda há espaço para a controvérsia. Há poucas semanas, o debate ganhou as redes, após a divulgação de um vídeo pela empresa de tecnologia InfoPreta, que dizia para não baixar filmes em torrent, porque a transmissão de dados poderia danificar seu computador. Muitos criticaram a postagem, reacendendo a discussão sobre a segurança e em defesa do torrent como forma de compartilhar conteúdos on-line diferente da pirataria.

Somada à disputa estão a grande indústria - que há anos tenta derrubar a pirataria e o compartilhamento de dados entre pares - e artistas - inclusive alguns que enxergam benefícios na divulgação “não-oficial” de suas obras. O debate entre legalidade versus pirataria ou direitos autorais versus acesso democrático não está morto. E a era dos streamings já mostra ter herdado algumas questões do passado da indústria.

Estudo recente da empresa de equipamentos de rede Sandvine mostra que, após muitos anos em queda, em 2019 a pirataria voltou a crescer e hoje responde por 32,4% do conteúdo em vídeo consumido na internet. Especialistas apontam que o retorno do consumo é consequência do aumento da variedade de canais de streaming com conteúdos exclusivos. O fim do monopólio da Netflix fez com que se tornasse muito caro ter vários serviços, e muitas pessoas voltaram ao torrent. Além, é claro, da crise econômica mundial.

Mas o que exatamente é o torrent e por que tem sido uma pedra no sapato para os streamings? Em entrevista ao Viver, o professor Leonardo De Marchi, doutor em comunicação e professor da UERJ, explica: “O bittorrent é um sistema de compartilhamento de dados entre pares e vem em uma geração pós-Napster (streaming de música popular nos anos 2000), ou seja, é uma forma de compartilhamento descentralizada. O bittorrent, entre outros sistemas, funcionam a partir de uma nuvem em que os computadores se interconectam.” Assim, a tecnologia do torrent se torna difícil para a Justiça encontrar um dono, hospedeiro criador do sistema, para processá-lo. “Muitas das coisas que circulam nessas redes não são protegidas por direitos autorais. Não dá pra dizer que eles só servem para isso, porque seria um entendimento de interesse da indústria para condenar em prol de interesses econômicos”, diz Leonardo.

Um dos pontos centrais comentados no vídeo contra o torrent que viralizou é  a segurança. Em um contraponto estão os aportes dos streamings contra a fama de conter malwares e vírus em dados compartilhados por sistemas de torrent. “Os argumentos usados são clássicos dos anos 2000, que falavam que em primeiro lugar você seria um criminoso (...) e por fim, baixar um vírus para o computador. Efetivamente, a partir de um tempo, a própria grande indústria fez esse trabalho de inserir vírus em sistemas de compartilhamento”, pontua. “Mas essa moralização do uso da internet é um argumento clássico da grande indústria de mídia dos anos 2000, que não funcionou, só começou a mudar depois que mudaram seu sistema. O problema não reside nas pessoas, e sim na indústria, que não conseguiu negociar com o Napster, por exemplo.” Foi surfando na onda de serem uma possibilidade legal e lucrativa para a indústria que os streamings ganharam força.

No sentido da democratização, esses desgastes mostram a consolidação dos serviços ao velhos modos da indústria. Principalmente se pensarmos que a internet mudou ao jeito de consumir conteúdo das pessoas e, mesmo “bombando”, 99% dos serviços de música são deficitários, ou sejam, não se pagam. Outras duas limitações dos serviços para uma possível democratização são o preço da mensalidade e os algoritmos que configuram o consumo, já que pouco adianta uma obra existir na plataforma se dificilmente existem mecanismos para encontrá-lo.

É importante também pensar do ponto de vista para a base dessa cadeia, que é a própria classe artística. Muitos já se mostraram favoráveis ao compartilhamentos desses dados ou versões não oficiais como forma de divulgação. “Ver Bacurau espalhado pelo mundo da pirataria é sinal de que o filme impactou fortemente a cultura”, tuitou o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho. O rapper Mano Brown, do Racionais MC’s, disse no programa Roda viva que ter seu DVD vendido na rua fortalece a disseminação e leva o público a consumir o que de fato sustenta um artista: os shows.

Outra questão é relativa aos catálogos dos streamings. Segundo a Ampere Analyses, filmes anteriores à década de 1970 representam 1% do acervo da Netflix. “No cinema, existe o absurdo extremo que é a ausência das obras de um Akira Kurosawa, por exemplo. E aí, você faz o quê? Deixa de lado? Nunca mais vai ver? Se não fossem os fãs de cineastas subindo os filmes com legenda, no YouTube ou torrent, ninguém teria acesso”, pontua De Marchi.