"O que escrevi obedece à época" Em entrevista ao Diario, o autor Manoel Carlos, que já viveu 68 dos 70 anos da televisão brasileira, afirma não temer "cultura do cancelamento" e que não corrigiria os rumos das tramas que escreveu

DIOGO CAVALCANTE
diogo.couto@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 21/09/2020 03:00

A televisão brasileira completou 70 anos na última sexta-feira, e um de seus pioneiros foi o autor Manoel Carlos. Apesar de não assinar uma novela inédita há seis anos, quando foi ao ar Em família, em 2014, suas histórias seguem vivas na memória afetiva do público, com sua representação do Leblon, bairro carioca, e dos dramas protagonizados por suas Helenas. Em entrevista concedida ao Diario, o escritor de 87 anos deixa no ar se volta ou não à teledramaturgia e afirma que não teme o “cancelamento” das redes sociais por algumas abordagens feitas no passado e nem corrigiria os rumos do que foi escrito.

“Sei da grande responsabilidade em lidar com a audiência de um sucesso. Ouço e leio as críticas abalizadas, defendo e discuto meus pontos de vista”, diz Maneco, como é conhecido. “O que escrevi obedece à época em que tudo foi escrito.” Seu trabalho pode ser visto em dose dupla atualmente na Globo: com a reprise de Laços de família (2000) no Vale a pena ver de novo, às 16h40, e no Canal Viva, que reapresenta Mulheres apaixonadas (2003) na faixa das 23h.

Além dessas duas novelas, nos últimos quatro anos outros trabalhos de Manoel Carlos foram revisitados pelas TVs aberta e paga. O Viva trouxe Laços de família em 2016, Por amor (1997) em 2017 e Baila comigo (1981) em 2018. Já a Globo, após mais de dez anos sem reexibir uma trama de sua autoria, transmitiu Por amor nas tardes de 2019. E mesmo com tantos anos de distância, essas obras alcançaram excelentes índices de audiência e caíram de novo no gosto do público. “Eu me sinto bem em ser lembrado pelo meu trabalho”, diz o autor, que tem contrato fixo com a Globo.

Nas sinopses de suas tramas, ele sempre deixa um fio condutor, com começo, meio e fim. Mas como novelas são obras abertas, sujeitas a mudanças, nem sempre a ideia original é levada ao pé da letra. “A reação do público, para mim, é sagrada e deve ser avaliada com muito cuidado, para não parecer apenas uma troca de favores. Minhas novelas procuram ser realistas, sem esquecer da ética”, conta. Ele cita como exemplo o rumo tomado em Por amor. “A (desistência da) morte da Eduarda e a (manutenção) da troca dos bebês seguem esse critério”, aponta.

Amante de panquecas de camarão, o autor leva uma rotina sossegada com a esposa, Elisabety Gonçalves de Almeida, a cadela Lola e os gatos Gucci e Noa. Sua saúde, segundo Bety, está boa, apesar da hérnia de disco calcificada que o faz claudicar de uma perna e usar bengala há mais de 30 anos. Muito se especula sobre uma nova produção assinada por Maneco, mas ele desconversa.

“Nem descarto nem prometo nada. Estou com quase 90 anos. Estou na hora de fazer um balanço da minha vida”, pondera. Suas últimas participações efetivas na televisão foram em 2014, quando escreveu Em família, e em 2015, ano em que supervisionou o texto de Não se apega, não, quadro do Fantástico adaptado do livro homônimo da escritora Isabela Freitas.

E quanto aos 70 anos da televisão brasileira, dos quais esteve presente em 68 deles, Maneco não crê que o veículo perca sua relevância com a ascensão da internet. “A TV tem o seu lugar, seja através de dramaturgia, seja pela qualidade da música brasileira, como é o caso do Fantástico e outros musicais. Aliás, esse programa é a experiência (da mistura) da diversão e do jornalismo”, opina, ao recordar do Show da Vida, produto em que participou da concepção e da direção nos anos 70.

LEGADO
“Manoel Carlos atravessa a história da dramaturgia construindo uma identidade muito forte. É fácil para quem assiste diferenciar uma novela dele com a de outros autores. Ele investe em um universo seu e puxa a questão do merchandising social, dando visibilidade a pautas sociais. É muito autoral, não aplica só fórmulas prontas”, avalia Cecília Almeida, professora da UFPE e integrante da Rede Brasileira dos Pesquisadores de Ficção Televisiva (Obitel).

Alguns comportamentos retratados nas obras do autor são questionáveis aos olhos de hoje, mas Cecília concorda que são reflexos da época de produção. “Existem coisas que, sim, a gente deve questionar. Em Laços de família mesmo temos a relação de Cíntia (Helena Ranaldi) e Pedro (José Mayer), a retratação da Zilda (Thalma de Freitas). São coisas de um recorte de classe e gênero muito fortes, que não são problematizadas na trama como deveriam. Mas a gente tem que tentar assistir aos produtos respeitando a época em que foram produzidos e essas questões não eram tão discutidas na época”, pondera.

Doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP), Mauro Alencar reforça esse ponto. “Qualquer obra de arte é fruto de uma época. Você não pode querer enxergar o passado com os olhos do presente. Precisa entender que, naquela época, era algo naturalizado pelas pessoas, e que hoje não se aplica mais.” A crônica, estilo do autor, é em si um retrato comportamental da sociedade. “A crônica traz o sentimento do dia a dia, que é uma questão universal e atemporal. E até por ser crônica, é o retrato de uma época”, analisa.

Na visão de Mauro, a identidade de Manoel Carlos nasceu em suas duas primeiras novelas: Maria, Maria e A sucessora, ambas adaptações de livros veiculadas na faixa das 18h em 1978. “Em Maria, Maria, temos um ensaio do que seriam as Helenas posteriormente, com a atuação magnífica de Nívea Maria. Já A sucessora, com Susana Vieira, Rubens de Falco e Nathalia Timberg, considero um ensaio para o estilo crônica que ele viria a adotar a partir de Baila comigo”, pontua.