A obra mais dolorosa Estão matando os meninos, novo livro do pernambucano Raimundo Carrero, reflete sobre a violência e as injustiças sociais no país. "Causa revolta e dor", desabafa o autor

JULIANA AGUIAR
juliana.aguiar@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 10/10/2020 03:00

A morte do adolescente João Pedro, de 14 anos, baleado em uma operação policial no Rio de Janeiro, foi o pontapé para o escritor pernambucano Raimundo Carrero se debruçar nos escritos e produzir o livro mais recente, Estão matando os meninos, editado pela Iluminuras. “É uma tal de uma bala perdida que só pega em menino”, reflete um dos autores mais premiados do Brasil. “Um tema como a morte de meninos como João Pedro me provoca demais. Causa revolta e dor”, diz, em entrevista ao Viver. Em sua 20ª obra, com 14 contos inéditos e à venda por R$ 44 e R$ 25 (e-book), ele se mostra inconformado com as agressões sociais constantes no Brasil, especialmente as que vimitizam crianças, mulheres e negros.

O livro passeia por três temas: a morte de crianças, a pandemia e as injustiças sociais. “Escrever essas histórias talvez tenha sido a atitude mais dolorosa que enfrentei nesses meus 72 anos de vida”, desabafa o escritor. “Estou cansado, mas ainda assim acredito que minha obra, de alguma maneira, contribuirá para o fim desta guerra de bandidos, que só mata crianças e dizima uma geração de brasileiros.” As balas perdidas são relembradas em quatro textos, O artesão, Meninos ao alvo, atirar!, Tortura em dia de fome e O país do ódio. “Os meninos chegaram tanto ao protagonismo que não temos mais como nossos representantes aquelas caras com barbas. A juventude lidera o mundo contemporâneo, meninos e meninas. No mundo, as líderes atuais são duas jovens mulheres, Malala Yousafzai e Greta Thunberg. O nosso futuro está aí. É a juventude que tem o poder de transformação”, destaca. As ativistas recebem destaque no conto As meninas lideram o mundo (bom). Já a pandemia é retratada nos contos Mausoléu dos nossos amores e Vidas repartidas.

“Todos os dias, eu me sento na minha poltrona e assisto TV. Eu gosto muito de jornalismo, passo o dia vendo as notícias. E em alguns momentos, eu penso: ‘isso aqui dá um conto’. Vou lá e escrevo”, conta Carrero, que recorta a narrativa a partir de temáticas plurais e atravessa os escritos com personagens únicos. Para o escritor, não tem que existir um assunto para a escrita fluir. “Eu nunca interrompi meu processo intelectual, porque eu só preciso de mim mesmo. Se eu ficar em casa uma hora, eu escrevo uma hora. Minha inspiração vem da vida, não preciso me preocupar com relógio”, completa. “Mas volta atrás para acrescer uma informação: só tem uma coisa, eu prefiro escrever de manhã.”

Vivendo entre as quatro paredes de casa por mais de seis meses, Raimundo avalia os pontos positivo dos dias de quarentena. “Posso dizer que, em tese, a pandemia me fez bem. Aproveitei para escrever mais, atualizar minhas leituras. Vi o que já estava escrito, produzi novos contos. O desafio foi me acostumar com as aulas virtuais”, explixa. “Criei uma oficina literária on-line, mas vou te falar, ainda não me acostumei com computador. O ideal é que a gente tenha o aluno na frente, que a gente possa conversar com ele, questionar. No on-line, ele lê as sugestões por e-mail, mas nem sempre podemos debater”, continua. “Mas estou muito feliz, já dei aula para cinco turmas, foram mais de 30 alunos.”

Para se preparar, Raimundo contou com apoio de colegas que têm mais familiaridade com tecnologia. “Conversei com as pessoas que conhecem de computação e pedi que abrissem uma sala pra mim. E sempre tenho alguém acompanhando, caso a transmissão caia. Mas foi impressionante, não tive problema nenhum. E minhas aulas passaram a ter mais alcance. Agora tenho estudantes até nos Estados Unidos, em Portugal...”, comemora.

O período foi importante também para refletir sobre a vida. “Muitas reflexões e questionamentos em torno de mim mesmo: o que eu estou fazendo no mundo? Como posso melhorar o mundo? O que o mundo é pra mim?”.

PRÓXIMO LIVRO

Carrero já se prepara para o próximo livro, destinado à comunidade quilombola Conceição das Crioulas, situada em Salgueiro, no Sertão pernambucano, onde ele nasceu. “Quero escrever sobre as histórias dessas mulheres negras do Sertão. Eu acho que até junho do próximo ano, eu terei ele pronto. Vou aproveitar a sequência”, promete.

Na conversa, o autor lembrou ainda do longo período em que se dedicou ao ofício de jornalista no Diario. “Entrei com 17 anos, há muitos anos. Se eu morrer e você for me procurar, eu vou estar em alguma sala do Diario, pode ter certeza.”