O Brasil e suas geografias literárias No livro Viagem ao país do futuro, a portuguesa Isabel Lucas tenta desvendar se é possível conhecer o Brasil através da sua literatura

EMANNUEL BENTO
emannuel.bento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 03/08/2021 03:00

“Seria possível conhecer o Brasil através da sua literatura?”, questiona a portuguesa Isabel Lucas na introdução do livro Viagem ao país do futuro (Cepe Editora, 328 páginas), conjunto de 12 ensaios-reportagens que mesclam imaginários de cânones da nossa literatura com experiências de viagens realizadas a Recife, Salvador, Manaus, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Ela logo responde: “Talvez, mas a essência da viagem está na perseguição, na ilusão de que se pode chegar perto de qualquer coisa, de uma ideia de Brasil que tem a ver com mestiçagem e que comporta exuberância, dor, violência, uma crença no acaso ou numa divindade, numa salvação”.

Sem querer dar respostas definitivas a uma questão complexa até para os próprios brasileiros, os ensaios foram publicados simultaneamente no jornal literário Pernambuco e no jornal português Público. Agora, foram compilados no livro que será lançado hoje, com live às 17h, no canal da Cepe Editora no YouTube. O evento virtual contará com participação da autora, do editor da revista literária Serrote, Paulo Roberto Pires, e mediação do escritor e editor Wellington de Melo. Em setembro, o livro será lançado em Portugal, em parceria da Cepe com a Companhia das Letras.

O projeto tem a mesma proposta do livro Viagem ao sonho americano (Cia das Letras, 2017), em que Isabel viajou pelos Estados Unidos guiada por grandes escritores daquele país. A tarefa de fazer o mesmo no Brasil foi um tanto desafiadora. Afinal, apesar da maior proximidade linguística e cultural, são países que tinham uma relação de reino-colônia. Isabel é guiada por clássicos como Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, além de obras de Machado de Assis, Lima Barreto, Sérgio Buarque de Holanda, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector e outros que foi conhecendo, como Miró da Muribeca, Lourival Holanda e Sidney Rocha.

“Eu tinha uma relação à distância com a literatura brasileira, com algum conhecimento dos autores mais comuns. Quando comecei a ir ao Brasil, conheci a sua dimensão. É uma literatura muito mais diversa e rica. A viagem abriu meus horizontes para as diferentes geografias literárias, que em algumas vezes se encontram. Estamos falando de um continente, e que existe uma literatura nessa escala”, diz Isabel, em entrevista ao Viver.

A autora opina que a sua escolha inicial dos autores clássicos se deu de maneira conservadora. “Escolhi não apenas autores que eu conhecia, mas que também fossem conhecidos em Portugal. Eu estava escrevendo também para os portugueses”, explica. “Mas eu também tinha o objetivo de chegar até os autores não conhecidos lá, que tivessem alguma ligação com os canônicos, que estabelecessem uma conversa. Eles apresentam geografias e temáticas diferentes, trazendo em conjunto a diversidade que é o Brasil. São pessoas menos conhecidas fora de seus contextos políticos e geográficos”.

Isabel também admite que é difícil escolher um momento mais impactante da viagem, mas não deixa de ressaltar a sua experiência com o Sertão, área tão falada nas obras de autores como Guimarães Rosa. “Lembro quando cheguei num lugar aparentemente inóspito, mas escolhi ali um paralelo muito grande, não apenas nas linguagens e palavras, mas em um modo de olhar, de estar, em comum. Uma ancestralidade que talvez esteja associada ao mundo rural do sul da Europa. Talvez por isso seja um lugar tão chave, tão pouco contaminado, no melhor e pior sentido da palavra. Se mantém ali uma espécie de gênese do que são os nossos mundos. Foi muito emocionante perceber.”

MIRÓ DA MURIBECA

Ela conta que outra descoberta igualmente emocionante foi o próprio Miró da Muribeca. “Eu não fazia ideia de quem ele era antes de chegar no Recife. Fui conhecer a pessoa, sua história e foi como conhecer um pouco daquele universo que estava longe, no Graciliano Ramos”, diz Isabel. “Há uma sensação muito rica de poder descobrir e dar voz a quem não tem voz fora daquele contexto. Ele é quase um mito no Recife e provavelmente permanecerá ligado à história da cidade pela sua luta permanente. Recife e Miró fazem parte um do outro. Eu acredito que Miró faz uma literatura do prazer. Conta histórias, fala de pessoas, de sentimentos. Percebi ali coisas que, sem ele, não teria alcançado. Espero que ele possa ser uma pessoa feliz no sentido da felicidade de quem faz o que gosta. Eu não consigo pensar nele sem pensar num sorrisso.”

Isabel não poderia deixar de compartilhar, é claro, suas impressões durante a conversa: “Eu sabia muito pouco, apenas o que os turistas dizem. Clichês. Também sabia que Clarice Lispector tinha vivido lá”, conta.