A semente de uma arte libertadora

Publicação: 18/09/2021 06:30

A pedagogia de Paulo Freire possui uma relação estreita e frutífera com a cultura e a arte. Ao observar sua trajetória, observamos exemplos notórios, como as pinturas produzidas por Francisco Brennand para que ele pudesse usar em sua renomada experiência de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, ou sua atuação intensa dentro do Movimento de Cultura Popular, ao lado de nomes como Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna e Abelardo da Hora. Em Freire, arte - sobretudo, a arte popular - e educação estão se retroalimentando para dar protagonismo aos sujeitos no caminho da conscientização e libertação.

Em sua cidade natal, algumas dessas sementes artísticas que Freire ajudou a plantar ainda lutam para resistir. Uma delas está na Rua do Cupim, bairro das Graças, Zona Norte do Recife. Fundada em 1953, a Escolinha de Artes do Recife foi montada por Noemia Varela ao lado de nomes como Augusto Rodrigues, Ulisses Pernambucano, Francisco Brennand, Hermilo Borba Filho, Aloísio Magalhães, Hermilo Borba e Lula Cardoso Ayres e o casal Elza e Paulo Freire, a partir da experiência da Escolinha de Artes do Brasil, no Rio de Janeiro. Foi uma das pioneiras do Movimento das Escolinhas de Artes (MEA), que formou 124 iniciativas semelhantes no país. Na década de 1950, Freire foi presidente da instituição.

“O que dominava o pensamento da época no ensino das artes era a ideia de que crianças precisavam ser uma cópia dos adultos. Elas não eram livres, vistas como pensantes e produtoras de arte. Paulo Freire, Elza e Dona Noemia vão quebrar isso, dizer que a criança faz arte, sim, e que ela precisa de liberdade para isso, o que vamos chamar mais na frente de liberdade criadora”, explica Everson Melquíades, presidente da EAR há mais de uma década. Ele aponta que já nesses primeiros anos, o trabalho de Freire na Escolinha foi pioneiro na inclusão, nunca havendo separação entre crianças com e sem deficiência.

“São discussões que parecem bobagem, mas na época eram um escândalo. A arte-educação acaba bebendo muito de Paulo Freire a partir dessas experiências. A ideia de ler o mundo é fundamental para o ensino das artes, porque ler o mundo, com as crianças, pode começar por ler as obras de arte”, elabora Melquíades. O aprender arte no Brasil possui raízes fortes nas experiências em conjunto de Freire, Noemia e Elza Varela.

E quem bem pode atestar esse pioneirismo é uma das principais referências da história da arte-educação brasileira. Se hoje Ana Mae Barbosa é uma das professoras e pesquisadoras mais referenciadas neste campo, sua história na educação se liga ao Recife, não só com a Escolinha, mas diretamente com Freire e Varela.

Mae Barbosa morava no Recife e queria estudar Direito, mas a avó não autorizava, pois acreditava que lugar decente para mulher trabalhar era apenas como professora. A contragosto, começou as aulas em um cursinho preparatório para prestar concurso de docência. Lá, foi pedida uma redação sobre o porquê de cada aluno querer ser professor. Ela escreveu uma dizendo que não queria e foi chamada pelo seu professor. Ele era Paulo Freire.

“Cheguei mais cedo para conversarmos e, em três horas, ele me mostrou que eu não tinha tido educação, mas sim repressão e me convenceu que a educação era libertação. Foi fantástico. No mesmo curso, ainda tive aulas com Noemia e me encantei pela arte. Tive uma experiência horrorosa na infância com desenho. Mas veio um encanto com as aulas dela e segui ensinando”, relembra Ana Mae, ao Viver. Ela se tornou professora da EAR e também seguiu pelo Direito, mas teve a arte-educação como caminho longevo.

Segundo Ana Mae, Paulo Freire sempre deu pistas de sua relação com a arte em sua obra. Ao voltar do exílio, sua primeira palestra foi na Semana de Arte e Ensino da USP, convidado pela professora que foi sua aluna. A partir de uma perspectiva freiriana, ela desenvolveu uma metodologia pioneira no ensino da arte no Brasil, a Abordagem Triangular, que sustenta o aprendizado por meio do conhecer a história, saber apreciar as obras e o próprio fazer artístico.

“Essa sistemática parte dessa ideia dele que é contra o espontaneísmo. Entendo que o fazer arte é cultural, vem da história e de outras relações, é autônomo. Também introduzo a leitura da obra de arte, que é baseada na leitura de mundo proposta por Freire”, explica. Antes de lançar seu livro contendo essa prática, ela fez experimentos por mais de 10 anos, incluindo uma sistematização com grupos de arte na cidade de São Paulo, possibilitada pelo então secretário de educação, Paulo Freire.

DIFICULDADES
Hoje a Escolinha funciona com cursos para crianças, jovens e idosos possibilitados por docentes voluntários. O espaço abriga acervos importantes, como uma série de obras do Mestre Vitalino, livros únicos, instrumentos musicais e mais de 11 mil desenhos feitos por crianças desde sua fundação. “Não temos apoio público, nem privado. Trabalhamos com algumas crianças que pagam mensalidade, mas a maioria é de bolsistas. Como manter esse lugar vivo? É uma memória viva da arte e da arte-educação brasileira”, relata Everson, que diz precisar tirar dinheiro do próprio bolso para manter as atividades. “As pessoas vêm, olham o lugar caidinho, precário e dizem que vão tentar ajudar. Nós sabemos do que a escola precisa. A gente pede apoio, mas só recebe ideias.” (Rostand Tiago)