Bases freirianas para a criação do Teatro do Oprimido

ROSTAND TIAGO
rostand.filho@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 18/09/2021 06:30

Maria, moradora de Nazaré da Mata, subiu ao palco para interpretar um violento opressor pouco depois de voltar da delegacia na qual denunciou o marido após anos de violência em casa. O espetáculo, livremente baseado em sua história, foi construído a partir de uma experiência teatral que é sistematizada nos anos 1970 e que, do seu título às suas práticas, é contagiada pelo pensamento de Paulo Freire.

Trata-se do Teatro do Oprimido, concebido por Augusto Boal, e que tem esse nome justamente pela inspiração na Pedagogia do oprimido, de Freire. Boal sistematiza uma metodologia, que começa a ser concebida com seu Teatro Popular, que empregava durante sua experiência no Teatro de Arena, tornando o espectador como participante ativo.

É uma experiência que parte muito das ideias do educador pernambucano sobre o diálogo como ferramenta poderosa do aprendizado, em combate ao que chamava de “educação bancária”. Os alunos em Freire são os espectadores, ou melhor, espect-atores. Em Boal, também trazem ao jogo suas experiências de vida para possibilitar uma conscientização do seu lugar no mundo e o caminhar para uma libertação.

Foi em uma oficina de Teatro do Oprimido que Maria trouxe à tona sua história de violência. A partir de seu relato, a peça foi montada, com a orientação do Núcleo de Experimentação em Teatro do Oprimido (NEXTO-PE), encabeçado pelos atores, pesquisadores e arte-educadores Andréa Veruska e Wagner Montenegro. Com duas décadas de estudos dentro dessa metodologia, eles tocam o projeto desde 2012, buscando descentralizar e interiorizar essas práticas, sobretudo com a realização de oficinas.

Ambos começaram a experiência em Teatro do Oprimido com o extinto grupo Pressão no Juízo, Veruska enquanto estava no começo da faculdade de Artes Cênicas, e Wagner ainda no ensino médio. “No Pressão no Juízo, fomos estudando como as teorias de Boal bebem em Paulo Freire. A gente foi lendo vários livros de Freire e vendo as semelhanças. A diferença era trocar o nome educação por teatro, mas a base era a mesma, de libertar os oprimidos, trabalhar as histórias de vida das pessoas, os conhecimentos delas, essa educação transversal”, explica Weruska.

Boal e Freire tinham uma relação de admiração mútua e compartilharam diversos caminhos. Ambos tiveram que buscar exílio durante a ditadura, pela América Latina e Europa. Também foram influenciados por ideias do existencialismo, da fenomenologia e do marxismo, tinham a ação transformadora como grande objeto pedagógico, colocando os oprimidos em posição de protagonismo. Os dois morreram em 2 de maio - Freire em 1997, Boal em 2009.

O NEXTO se mantém ativo e operante, promovendo oficinas semelhantes à que revelou a história de Maria - por sinal, a primeira que eles realizaram - também experimentando a linguagem em outros suportes, como a videoarte, como foi o último projeto do grupo, Sethico, no qual Wagner interpreta uma figura com uma máscara africana visita e cola lambe-lambes em pontos do Recife marcado por experiências racistas.

Os próximos passos são continuar tanto as atividades de formação, com o projeto da Escola do Teatro do Oprimido, como essas iniciativas em outros suportes, incluindo um filme sobre masculinidades que está em processo de finalização. São contribuições artísticas que, assim como desejava Freire, visam a emancipação dos ainda milhões de oprimidos do país a partir da leitura do mundo, que tem a arte como um instrumento poderoso para tal. Incluindo voltar a dar força ao próprio conceito de oprimido, pois a partir da conscientização dele é que se vem a libertação freiriana.