Educar é um ato político Revisionismos infundados da era da pós-verdade ainda tentam minar a relevância do educador pernambucano Paulo Freire. Mas, em meio à crise no país, a obra e o legado mostram o quanto o patrono da educação brasileira, agora centenário, é necessário

texto: EMANNUEL BENTO
emannuel.bento@diariodepernambuco.com.br
design: Moacyr campelo
Arte: Silvino

Publicação: 18/09/2021 06:30

As sociedades pelo mundo assistiram, nos últimos anos, diversos “rótulos” difundidos através das redes sociais e fóruns on-line que, pouco a pouco, começaram a ser tomados como verdade por parte expressiva da população e até oficializados por governos. É o caso da nova fase de demonização do educador Paulo Freire. Visto como subversivo na ditadura de 1964-1984, o professor pernambucano se tornou o “bode expiatório” da nova direita para justificar uma suposta hegemonia das esquerdas na educação e na cultura, mas também como parte de um revisionismo histórico em relação ao regime militar. Isso foi tão difundido que o atual governo federal não realizou nenhuma ação ou programação em comemoração ao seu centenário, celebrado neste domingo, mesmo sendo Freire o patrono da educação brasileira.

Independentemente das épocas, é possível encontrar um mesmo propósito nos discursos em crítica ao pedagogo: Paulo Freire teria objetivos políticos em sua atuação. Nos anos 1960, o argumento era usado em torno da campanha de alfabetização, realizada com camponeses adultos. Na atualidade, todo o seu legado é posto em xeque, sobretudo a "pedagogia do oprimido”. Neste mês, essa perspectiva chegou a aparecer na revista estadunidense de viés liberal Economist, que citou Freire como um teórico influente para a nova “esquerda autoritária americana”.

“SUBVERSIVO”

O doutor em história Dimas Veras Brasileira e professor do IFPE, que prepara o artigo Pedagogia do amor em tempos de ódio on-line: Contribuições político-pedagógicas de Paulo Freire, contextualiza que o processo de construção do pensamento do educador se deu após a redemocratização de 1945, quando existia um senso muito forte de democracia. “Ele começou ensinando em instituições ligadas ao setor patronal, como o Sistema S, da Confederação Nacional da Indústria. Quando vai para a universidade, que era igualmente conservadora, já existia uma reflexão de crítica a esses ambientes, dentro do que estava sendo feito”.

No começo dos anos 1960, Freire estendeu a sua atuação para mais instituições, como o Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, e começou as primeiras campanhas de alfabetização, projeto que ganha atenção internacional após experiências em Angicos (RN). “A ideia era alfabetizar, mas dando consciência às pessoas a partir de suas leituras de mundo. Ela aprenderia a ler a palavra, ao mesmo tempo em que aprenderia a ler o mundo em sua volta. Isso não ocorria a partir do posicionamento do professor, que era apenas mediador do processo e coordenador de debates”, diz Dimas.

O então presidente João Goulart escolheu o método para criar um Programa Nacional de Alfabetização, o que tornou o educador um alvo da campanha midiática conservadora antes e depois do golpe: seu método seria subversivo, com objetivo ideológicos tendendo ao comunismo. “A ideia do plano era alfabetizar 20 milhões de pessoas, numa época em que analfabetos não podiam votar. Isso faria uma diferença eleitoral. Contudo, é importante ressaltar que o projeto modernizante-conservador (dos grupos que iriam articular o golpe) perdeu todas as eleições para presidente desde 1946”.

CRÍTICAS ATUAIS

A questão da “neutralidade” no ensino voltou com peso ao debate público em meados da década passada, com o crescimento do movimento Escola Sem Partido. “Para Freire, a neutralidade é impossível”, pontua Dimas. “Para ele, a educação é um ato político, em que é preciso afirmar a sua posição para que não exista um diálogo manipulador. Você sabe qual é a visão de mundo do outro, o que possibilita um diálogo aberto e democrático.”

A nova onda de críticas ao educador começam a ficar nítidas por volta de 2015, através das redes sociais e nos protestos contra o segundo governo de Dilma.

A pesquisadora Michele Prado, autora do livro Tempestade ideológica (Editora Lux), afirma que Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo, já vinha publicando artigos em crítica ao educador. “Freire entrou num contexto de teoria conspiratória do marxismo cultural, de que através da educação seria possível conquistar as mentes das pessoas para a esquerda. Acredita-se que existe uma elite oculta comandando instituições pelo mundo, fazendo as pessoas pensarem de determinada forma. Isso é remetido a muitas organizações internacionais, especialmente as de saúde e educação, e exemplo da Unicef”, diz. “Isso ocorre porque na extrema-direita, apesar das diferentes correntes, existe uma rejeição total aos princípios liberais no sentido político, como o estado democrático de direito ou a imprensa livre.”

Contudo, a pesquisadora afirma que essas críticas não chegam a se aprofundar tanto no âmbito teórico. “Elas ficam mais no superficial, com objetivo de minar reputações”, diz. “É importante perceber que esses ataques ao Paulo Freire ou às agências internacionais carregam uma ideia de que a cultura modifica a política. Eles querem ocupar o espaço do Paulo Freire, retirando-o primeiro. A ocupação desse espaço não é por acaso, pois existem projetos políticos.”

Acima de qualquer polêmica, a presença do pedagogo no debate público ressalta a contemporaneidade da sua obra. Para ele, falar da política presente na educação nunca foi um tabu, como registrou em Pedagogia da esperança (1992): “Não percebiam, porém, que, ao negarem a mim a condição de educador, por ser demasiado político, eram tão políticos quanto eu. Certamente, contudo, numa posição contrária à minha. Neutros não eram, nem poderiam ser”.

Tripé (Ensino - Pesquisa - Extensão)

Foi apenas após a redemocratização, no Art. 207 da Constituição de 1988, que foi estabelecido nacionalmente o princípio
da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, o chamado Tripé Universitário. Algo que Paulo Freire já havia defendido e implantado desde a década de 60.

Linha do Tempo


1921

Paulo Reglus Neves Freire nasce no Recife, em 19 de setembro de 1921.

1929

Sua família, de classe média, vivencia a pobreza e a fome durante a depressão de 29, uma experiência que o faria se preocupar com os mais pobres.

1943

Ingressa na Faculdade de Direito do Recife.

1944

Conhece a professora primária Elza Maia Costa Oliveira.

1946

É indicado ao cargo de diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social do Estado de Pernambuco.

1961

Torna-se diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade do Recife e, no mesmo ano, realiza a primeira experiência de alfabetização popular.

1963

Alfabetiza 300 cortadores de cana em apenas 45 dias, em Angicos, no interior do Rio Grande do Norte.

1964

Meses após a implantação do Plano Nacional de Alfabetização, foi encarcerado como traidor por 70 dias e parte para o exílio na Bolívia.

1967

Trabalha no Chile para o Movimento de Reforma Agrária da Democracia Cristã e para a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação.

1968

Conclui a redação do seu livro mais famoso: Pedagogia do oprimido.

1969

É convidado para ser professor visitante da Universidade de Harvard, em 1969.

1980

Com a Anistia em 1979, Freire retorna ao Brasil no ano seguinte.

1981

Torna-se presidente da 1º Diretoria Executiva da Fundação Wilson Pinheiro e integra o Partido dos Trabalhadores (PT).

1989

É nomeado secretário da Educação da Prefeitura de São Paulo, no governo de Luiza Erundina.

1991

Criação do Instituto Paulo Freire, em São Paulo.

1997

Morre, de ataque cardíaco, aos 75 anos, no Hospital Albert Einstein.