ENTREVISTA » "Paulo Freire vive"

Publicação: 18/09/2021 06:30

“O próprio Freire diria: ‘não celebre esse centenário para mim. Celebrem comigo’”, elabora Targélia de Souza Albuquerque. Comprometida com a educação desde os 14 anos, seja em escolas, universidades, unidades de ressocialização ou movimentos sociais, a professora tem sua trajetória atravessada por Paulo Freire, cuja vida e obra foram pesquisadas intensamente por ela. Ela faz parte da Cátedra Paulo Freire e do Centro Paulo Freire de Estudos e Pesquisas desde a fundação, em 1998. E não hesita em atestar que as escolas ainda precisam abrir de fato as portas para as ideias do patrono da educação brasileira, combatendo o discurso de que os problemas educacionais do país têm o educador pernambucano como motivo. (Rostand Tiago)

Entrevista - Targélia de Souza // educadora

Há um certo discurso reacionário que tenta imputar os problemas da educação no Brasil à uma suposta grande má influência das ideias de Paulo Freire nela. Mas defensores de Freire apontam que o problema é o contrário, que suas ideias ainda não entraram de fato nas escolas brasileiras. Como se dá essa não entrada?

A filosofia do projeto de Paulo Freire é vinculada a um projeto emancipatório de nação democrática. Ele propôs uma metodologia de alfabetização política, a educação como um ato político e considerando a dimensão pedagógica da política. Essa é uma experiência que aconteceu com 300 trabalhadores em Angicos, mas que não aconteceu ao acaso, veio sendo construída nos conselhos de pais e mestres, no Movimento de Cultura Popular, nos movimentos de educação de base. Não era apenas um método de alfabetização. Junto a outros intelectuais e sua esposa, Elza, ele agregou a esse método toda uma significação político-social

Com o golpe militar, esse processo de conscientização, de criticidade, de enxergar o seu lugar no mundo e as contradições dele, desvelar as violências e opressão, passa a ameaçar a ordem instituída. O golpe de 1964 o considerou inimigo público, porque ele estava subvertendo a ordem, fazendo a pessoa desnaturalizar a violência. Por que Paulo Freire ameaça tanto? Porque você tem sempre um grupo contra e outro a favor. A educação é um ato político dentro das relações políticas. Se há um grupo que defende que a escola seja acéfala, burocratizada, que produza robôs e pessoas a serem manipuladas, defendem que o conhecimento é neutro, que não se dá em um jogo de forças, é claro que vão ser contra Paulo Freire.  A ideia da educação enquanto um processo de compreensão da realidade e libertação apavora.

Enquanto vários lugares do mundo publicavam Paulo Freire, a Pedagogia do oprimido é um dos três livros mais lidos do mundo na área da educação, mas só em 2012 ele é reconhecido pelo Congresso como patrono da educação brasileira, por lei. É uma luta cotidiana. Paulo Freire está na escola? A culpa dos problemas do Brasil é porque as pessoas o conhecem? Eu posso dizer com segurança que, apesar desse excesso de lives nesse centenário, o próprio Paulo Freire diria ‘não celebre esse centenário para mim. Celebrem comigo’. As pessoas precisam conhecer ele, mergulhar nos seus livros. Ele nunca chegou às escolas como proposta pedagógica radical, que radicaliza uma educação para qualidade social, ainda falta muito.

Que estratégias ou artimanhas foram usadas para manter Paulo Freire fora das escolas?

Não existem artimanhas e estratégias descoladas de uma proposta de governo. Se você tem gestores que se alinham aos movimentos sociais, que estudam e reconhecem Paulo Freire, com certeza, mais facilmente, isso vai chegar à escola. Agora outra coisa é ter uma governança que vai minando a valorização do ser humano, que desqualifica a ciência, fragmentando as políticas públicas para o avanço dela no país, sucateando a universidade. Há estratégias de minar escolas que estimulam a crítica, que trata o conhecimento com possibilidade de diálogo sobre a existência humana e a história.

Para minar, nada melhor do que apresentar uma proposta de escolas militarizadas, porque digo aos pais que ao invés de estudar e dialogar com os filhos, coloca lá que a escola vai disciplinar, na escola do chicote. Mas essa escola do chicote burocratiza a mente, bloqueia, destitui o sujeito humano de sua capacidade mais profunda de reflexão crítica. Outra estratégia de minar é quando organizam as bases nacionais comuns curriculares que mais modelam os conteúdos e pré-determinam competências e habilidades e não trabalham com o sujeito na sua integridade. Aí vão proibir ou perseguir professores que discutam relações étnicas-raciais, em um momento que há seis mil indígenas em Brasília gritando e esbravejando que existem.

Um dos principais fatores para que barram Paulo Freire de entrar nas escolas são esses ciclos de democracia e autoritarismo?
Democracia não se faz de uma hora pra outra. O próprio Paulo Freire discute isso, uma inexperiência democrática. Quando ele passa quase 16 anos no exílio, ao retornar, ele diz que voltou para ‘reaprender o Brasil’. Se você trouxer a história do Brasil, você tem poucos espaços de experiência democrática. Vêm os movimentos pioneiros de Escola Nova em 1932, o que acontece em 1937? O golpe getulista. Você, até 1945, vai viver experiências antidemocráticas. Vem depois um período que não é de trégua, de organização dos partidos e do trabalho de Paulo Freire. Vem 1964, o golpe militar, 20 anos de uma ditadura. Somos muito novos no processo de democracia. Paulo Freire chama a atenção para isso e fala sobre sentar à mesa com os divergentes, com os diferentes, com a diversidade, mas contra o antagônico. Juntando forças para combater, o bom combate, a justa raiva, principalmente diante das atrocidades. Haverá sempre um embate, agora estamos em um gravíssimo. A liberdade contra o autoritarismo. Se eu congelo as mentes das crianças, eu manipulo os conteúdos e o processo libertário de construção do conhecimento e formo uma geração que não vai enxergar seu direito de ser livre.

E quais meios possíveis para Paulo Freire entrar de fato nas escolas brasileiras do futuro?
Resistência, meu amigo, muita resistência. Paulo Freire não dá conta sozinho da educação brasileira. Ele dizia: ‘me reinventem’, dialoguem com outros autores. A gente tem que convidar professores e professoras para acolherem Paulo Freire e compartilharem sua história de vida e seus princípios com os estudantes. Formar coletivos fortes, fortalecer as lutas dos trabalhadores da categoria. Juntar forças em prol de uma sociedade brasileira substancialmente democrática.

Paulo Freire vive. A obra dele não persistiria até hoje se não tivesse força. Mas a obra dele sozinha não vai fazer nada. São pessoas, a partir desse legado, que poderão mudar as situações de opressão.