A trincheira de Don L Grande nome do hip-hop brasileiro traz em Roteiro para Aïnouz 2, 17 faixas embebidas de fogo e querosene contra o sistema capitalista

ROSTAND TIAGO
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Publicação: 30/11/2021 03:00

“Sou muito mais guerrilheiro do que MC”, diz o rapper cearense Don L em Todo vapor, uma das 17 faixas de Roteiro para Aïnouz, Vol 2, que sucede o Roteiro para Aïnouz 3. São detalhes que acabam contemplando duas importantes propostas que um dos maiores nomes do hip-hop brasileiro da década vem propondo com esse novo trabalho. Uma delas é o mergulho total no clamor à coletividade e organização de classe para lutar. E lutar, não apenas pelo futuro, mas também pelo passado a partir do presente, em uma hibridização temporal que demarca a estabilidade do intocado estado das coisas das tragédias brasileiras. É atacar ao mesmo tempo engenhos e centros financeiros, bandeirantes e banqueiros, colocando a especulação de uma revolução tanto no que passou, como no que virá.

“A gente mergulhou num mar de individualismo que é pura ideologia. Até nós, enquanto rap, passamos de uma perspectiva coletiva no começo para um extremo de individualidade. Mas foi só depois que fui entender o conceito de ‘realismo capitalista’, quando devorei a obra do Mark Fisher, entendi exatamente o que era”, afirma Don L, em entrevista ao Viver. “A gente não consegue viver grandes sonhos sem grandes utopias, e nossos sonhos estavam pautados pela publicidade, propaganda, que é pura fantasia individualista. A gente chama de realismo capitalista, porque eles vendem como realismo, mas é fantasia. Isso não tem como trazer uma vida que possa ser chamada de digna e plena”, elabora

A partir daí, Don L cria um disco embebido em gasolina e fósforo, voltando a usar seus versos para pintar cenas vivas que se pautam na construção de alianças, tomadas de consciência, ação direta e também saber respirar entre as batalhas. Ele classifica a trilogia como “reversa”, um looping que ressignifica o próprio passado para ter perspectivas do futuro, continuando buscando “aquela fé” que, de acordo com ele, é a música chave do disco anterior, mas deslocando o eixo da busca, saindo um pouco mais da introspecção que trazia reflexões sobre suas vivências enquanto um rapper nordestino em São Paulo e se permitindo especular mais de dentro pra fora.

Nessa busca pautada pela coletividade, ele vai resgatar nomes da história brasileira e global que fazem parte do continuum de sua luta, seja para tirá-los da demonização ou para não permitir que sejam absorvidos pelas narrativas capitalistas. Cita revolucionários como Thomas Sankara, Che Guevara, Assata Shakur, Marielle Franco e Carlos Marighella como parte fundamental da luta pelo passado.

“O anticomunismo, uma das forças mais violentas de nosso tempo, vem acompanhado pelo falseamento da história. A luta por ela precisa ser uma das principais. É preciso fazer o resgate de figuras históricas que são nossos heróis pela forma como eles são: revolucionários. Ou, daqui a pouco, eles estarão em propagandas de multinacionais, porque o anticomunismo, quando não consegue apagá-los ou demonizá-los, os coopta. Hoje, por exemplo, vejo as pessoas tentando pintar o Marighella como um defensor da democracia burguesa, mas ele é um revolucionário comunista que deu a vida por isso, então temos que respeitar a luta dele”, afirma Don L.

Por mais que os caminhos estivessem anunciados, o RPA 2 é lançado em um mundo completamente diferente do disco anterior, que completou quatro anos de lançamento. O rapper não pretendia demorar tanto, mas a luta para produzir um disco enquanto artista independente é dobrada. Ele se vê como um rapper que, por exemplo, não conseguirá contar com dinheiro de marcas pelos discursos que propõe. Também não quer fazer uma produção de música quase que seriada na busca por views que talvez viabilizassem novos projetos. Ele respeitou seu tempo de criação e a recepção do disco vêm mostrando que valeu a pena.

Nessa caminhada, Don L pode trabalhar na produção ao lado de outros veteranos como Nave, além da mixagem de Luiz Café, contando ainda com contribuições de nomes como Mahmundi, Daniel Ganjaman, Deryck Cabrera, 808 Luke e Willsbife, além das vozes e coros de Djonga, Alt Niss, Tasha & Tracie, Rael, Giovanni Cidreira, Terra Preta, Eddu Ferreira e Luiza de Alexandre.

“É um disco que tem trap, drill, boom bap, afrobeat, funk brasileiro, tudo muito ligado pelo conteúdo. Pude contar com mais estrutura agora do que tinha antes. Ainda não estou em 30% do potencial que eu tenho de fazer um disco caso tivesse melhores condições, mas tive grana para excelentes produtores, beatmakers e essa galera toda que está comigo em uma caminhada de evolução”, comenta o rapper.

Ele volta a conectar seu trabalho com o audiovisual, começando pelo nome do projeto, que diz ser um roteiro para ser filmado pelo diretor conterrâneo Karim Aïnouz. “Terminamos esse disco numa correria. Até os 45 do segundo tempo, estávamos ainda fazendo as coisas. Queria fazer coisas que não tinha grana, mas queria fazer, peguei dinheiro emprestado. Estamos com expectativas de rodar o Brasil com essas instalações no palco. Quero fazer isso porque a gente precisa fortalecer a arte anticapitalista, que não é puramente panfletária, que tem um requinte e tem uma perspectiva de mudança social”, conclui.