Cortinas abertas à pluralidade Na semana do Dia Nacional da Visibilidade Trans, comemorado em 29 de janeiro, festival Janeiro Sem Censura abre espaço para grupos pautados por temáticas que abraçam as minorias

Rostand Tiago
rostand.filho@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 25/01/2022 03:00

Em 2019, quando o espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, protagonizado pela atriz trans Renata Carvalho, sofreu diversos episódios de censura no Recife, um grupo de artistas se mobilizou em uma movimentação combativa denominada Janeiro Sem Censura. O que era uma ação pontual acabou se tornando uma semente para um projeto que se instaurou na capital pernambucana em prol da ocupação de corpos silenciados nos circuitos de arte da cidade.

A partir desta quinta-feira, é realizada a quarta edição da iniciativa, que traz teatro, dança, cinema, música e oficinas para o Espaço Cênicas e o Teatro do Parque, em uma programação de dez dias.  O Janeiro Sem Censura vem sendo idealizado e organizado sob muita luta do Coletivo de Dança-Teatro Agridoce, que o realizou de forma remota no ano passado e agora vem com um modelo híbrido, com as atividades presenciais sendo retransmitidas pelo YouTube.

“É uma grande realização conquistada em quatro anos de muita luta. A gente sempre fez de tudo para viabilizá-lo, sempre tentamos financiamento, mas nunca conseguimos, algo que passa um pouco pela própria censura institucional”, diz Sophia Williams, uma das organizadoras. “Agora podemos oferecer nossa oficina voltada para pessoas trans, travestis e não-binarie, convidar vários artistas que sempre estiveram conosco na luta para se apresentarem e ver algo que começou como um festival de fim de semana agora ter três deles.”

A partir da quinta-feira, no Espaço Cênicas (Av. Marquês de Olinda, 199, Bairro do Recife), será realizada uma maratona, que conta com shows, performances de dança, espetáculos teatrais, debates e oficinas, abarcados pelas vivências LGBTQIA+, negras e periféricas. Já no próximo dia 9, o festival realiza a mostra audiovisual Cine Pitangas, com a exibição de seis curtas metragens e um longa, atravessados pelas questões estéticas e temáticas que norteiam as diretrizes do Janeiro Sem Censura.

“Sempre pensamos em abraçar essas diferentes linguagens que tratem sobre negritude, violência contra a mulher, transsexualidade, vivência LGBTIQA e todos os corpos que são constantemente silenciados. É um momento das pessoas ouvirem o que temos a dizer, são espetáculos protagonizados pela dita minoria para que a maioria escute essas vozes e saia pensando se já não foram racistas ou transfóbicas em suas vidas. Nossa essência é deixar essa semente na cabeça das pessoas que passarem pelos nossos espetáculos e nossos diálogos, que as bolhas possam ser estouradas e que consigamos adentrar outras bolhas”, elabora Williams.

A própria existência do festival é marcada por uma série de batalhas para se tornar viável. No último ano, por exemplo, a iniciativa foi aprovada pela Lei Aldir Blanc, mas no momento do empenho do valor, eles não tiveram acesso aos recursos, sob uma alegação de erros na documentação que, de acordo com os organizadores, nunca houve uma procura prévia para se realizar as correções necessárias. Após a publicação de um texto de esclarecimento da situação, o Janeiro Sem Censura foi abraçado por diversos artistas, que permitiram sua realização em formato online, com apresentações seguidas de debates. Neste ano, contudo, deu tudo certo nos trâmites do edital, e o festival conta com recursos para sua realização.

E sua realização é pautada não só por fazer esses artistas ocuparem a cidade, mas também de resgatar figuras da vida artística da cidade que lutaram para criar um território um pouco mais aberto para os que vêm agora. É o caso da homenageada desta edição, Sharlene Esse, considerada um das primeiras pessoas trans na cena cultural do estado, em especial ao interpretar grandes divas da MPB. Na abertura do festival, ela se apresentará com a performance Atenção, se beber, não dirija.

“Sharlene é uma pessoa que abriu portas para que pessoas como eu pudessem subir no palco de um Teatro do Parque, de um Hermilo, de um Santa Isabel. Ela passou por diversos momentos de impedimento no fazer arte, atravessou a ditadura, então é algo muito representativo homenageá-la. Hoje, muitos grupos de teatro não acolhem pessoas trans e travestis, afirmando não ter papéis para nós, como se não pudéssemos interpretar pessoas cis. Mas Sharlene sempre fez isso, por exemplo. A compreendemos como esse grande símbolo de resistência”, comenta Sophia.

As atividades realizadas no Espaço Cênicas começam sempre às 19h, e os ingressos são vendidos no modelo “pague quanto puder”, a partir de R$ 10. Já a mostra Cine Pitangas começa às 18h e a entrada é gratuita.