Nas mãos de um mestre Em A mão de Deus, o italiano Paolo Sorrentino nos conduz por um filme sobre juventude, Nápoles e a mão do deus Maradona

Rostand Tiago
rostand.filho@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 19/01/2022 03:00

Quando o lendário Diego Maradona faleceu em 2020, o estádio do Napoli, na Itália, uma de suas mais emblemáticas casas futebolísticas, passou a levar seu nome. Anteriormente, o campo levava o nome de San Paolo. De alguma forma, toda carga afetiva que essa mudança traz, com a destituição de um santo católico para a homenagem a um santo futebolístico, entre a estranheza, a vulgaridade e as paixões envolvidas nessa atitude, são encenadas em A mão de Deus, novo longa do italiano Paolo Sorrentino, presente desde dezembro no catálogo da Netflix e que faz sua estreia nas telonas do Recife nesta semana, nos Cinemas da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

O filme de amadurecimento proposto por Sorrentino é um abraço a uma forma de passar pela juventude muito específica de alguns lugares do mundo, seja na América Latina ou na Europa Latina, como a terra natal do diretor, a cidade italiana de Nápoles, onde ambienta este seu novo longa. É um amadurecimento em que noções de sagrado, profano, vulgar, erótico e familiar parecem se confundir em um amálgama de pulsões de vida em que um não está acima do outro.

Essa é a história do jovem Fabietto, que vê seu despertar sexual se misturar com a euforia de ver o maior astro do futebol jogando em seu time e com as mais pitorescas intrigas familiares ao mesmo tempo, enquanto tenta decidir seu futuro. São instâncias de sua vida que não são vividas em blocos separados, mas em uma argamassa dramática na qual o desejo erótico pode se direcionar para a família, e a paixão pelo futebol é parte fundamental de sua relação com as pessoas ao seu redor.

Sorrentino coloca essa mistura em cena a partir de um coral de figuras que são obviamente caricaturas exóticas, mas que não se encontram reduzidas a isso, expressando sempre que podem humanidade e ternura. A mão de Deus consegue estabelecer um tom muito seguro e específico de melodrama cômico, que abraça visualmente esses aspectos de estranheza, do que é sacro, das paixões, além de construir uma montagem que gosta de se demorar em alguns detalhes mais sórdidos ou banais, e das mais diversas relações desses personagens com as paisagens que estão inseridos.

É uma fotografia que é mais calorenta do que quente. Há um certo apelo bucólico na encenação desses espaços, mas um bucolismo que se deixa contagiar pelo vulgar e pelo sórdido. Ele reforça alguns imaginários muito compartilhados entre a América Latina e a Europa Latina, filmando uma cidade italiana que tem como maior ídolo um jogador de futebol argentino, na qual as mais imponentes arquiteturas católicas são rodeadas por uma vida urbana muito carnal, mundana e erótica. Sorrentino coloca pitadas fellinianas bem explícitas e referenciadas na construção desse mundo que mistura o provinciano com o surreal.

E tudo é conduzido por um ritmo muito bem cadenciado de eventos que conseguem passar por casas de veraneio, pelo mar, por cinemas, teatros, estádios de futebol, bares, festas e manicômios. O filme vai flutuando entre suas pequenas trivialidades, suas piadas e seus intensos momentos melodramáticos de uma forma muito uniforme, a partir desse bem construído tom que por ser tão aberto ao pitoresco e ao terno, consegue dar força dramática a quase tudo que propõe nesse caldeirão hormonal em forma de filme.