Passeio com Paulo André Criador do festival Abril Pro Rock e figura singular na vida cultural recifense, especialmente nos anos 1990, o produtor lança o livro Memórias de um motorista de turnês, repleto de histórias e memorabilia

Rostand Tiago
rostand.filho@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 13/08/2022 05:25

Nos últimos tempos, foram lembradas algumas efemérides da injeção artística que tirou o Recife de uma ressaca cultural nos anos 1990. Em 2022, tivemos os 25 anos sem Chico Science. No ano passado, as três décadas do movimento manguebeat. Em 2020, a From Mud to Chaos, primeira turnê internacional da Nação Zumbi. Em 2019, os 25 anos do disco Da lama ao caos. Em um período tão instigante de memoriais, surge um precioso registro de quem não só viveu esses momentos, mas possibilitou toda a logística e conexões. O produtor cultural Paulo André Moraes Pires lança neste sábado, às 16h, no Centro de Artesanato de Pernambuco, no Marco Zero, o livro Memórias de um motorista de turnês, publicado pela Cepe Editora. A obra custa R$ 50 (impresso) e R$ 20 (ebook).

É um registro memorialístico de suas andanças pelo mundo, principalmente com Chico Science e a Nação Zumbi, perpassando as rotas que levaram o manguebeat a colocar o Recife de volta ao destaque na música. Criador do festival Abril Pro Rock, Paulo André diz viver muito no presente, mas é um grande entusiasta da memória e, por consequência, da memorabilia, colecionando artefatos dos shows e festivais por onde passa há quatro décadas.

“Ali, por volta de 2017, 2018, ganhei um celular novo e fiz uma conta no Instagram, uma rede muito visual, e eu tinha muita coisa para mostrar. Fui fazendo isso aos poucos, com alguns relatos e imagens guardadas. Com a chegada dessas datas redondas, a pandemia e todo processo de apagamento e ataque à cultura que esse país passa, tive a vontade de parar e escrever essas memórias. Com todo o baixo astral que vivemos, vi que não podia mais esperar. Apareceu o edital do Recife Virado, no qual o projeto foi aprovado, e fui organizar esses materiais”, diz Paulo André, ao Viver.

Os registros passam pelos perrengues da juventude como motorista de uma empresa de carrinhos de supermercado nos Estados Unidos, que lhe deu bagagem para, anos depois, levar artistas e instrumentos, promovendo encontros com grandes nomes da música que marcaram as andanças daqueles “doidos de Olinda” pelo Brasil, Europa e EUA.

Em sua escrita direta e fluida, Paulo André ilustra bem como a cidade passou de um marasmo total para a efervescência mangue, com o surgimento de artistas e locais emblemáticos, a exemplo da Soparia de Roger de Renor. “Ali foi uma geração de coisas que estavam começando a acontecer, em uma outra realidade. Eu brinco que se existisse teste de bafômetro naquela época, o manguebeat não existiria. Era todo mundo liso, ninguém tinha dinheiro de táxi pra ir pro Pina”, diz. “Hoje acho essa movimentação mais democrática, com mais estrutura. A cama foi forrada, inclusive no cinema, nos anos 1990, com uma razoável repercussão internacional. Lamento que a gente nunca entendeu o potencial do Recife em usar essa cultura tão viva para atrair o mundo. Mas acredito muito nas novas gerações, com uma outra visão de mundo.”

Os textos são acompanhados de imagens que dão a dimensão da intensidade dessa vida nas estradas, sobretudo nos anos entre 1994, quando foi realizada a From Mud to Chaos, produzida e guiada por Paulo, e 1997, com a morte de Chico. São fotos da estrada, cartazes de festivais, agendas e uma folha de recados telefônicos que não tinha descanso.

Passear por esse material despertou uma gama de sentimentos. “Apesar de mergulhar na minha memorabilia, eu vivo o hoje. Mas às vezes é difícil. Como quando você perde um amigo que estava no auge da carreira, alguém com quem você teve grandes experiências -e também estava sempre falando sobre a vida. Lembro que quando Chico morreu, eu nem tive tempo de me afundar, estava na contagem regressiva do Abril Pro Rock em uma edição que precisava dar certo diante da tragédia que tinha sido a anterior.  Mas lembro de logo após a morte, ter ido me isolar em Tabira. Foi um domingo antes do carnaval, não queria encontrar pessoas e receber os pêsames”, relembra Paulo.

“A superação do trauma veio com muito trabalho, que ocupou a cabeça, e ver a cena mangue se perpetuar. Nunca tive dúvidas do potencial da Nação sem Chico. Naturalmente, veio uma galera como Cascabulho, Cordel, DJ Dolores e todos que colocaram Pernambuco na cena pop pra nunca mais sair. E, se depender de mim, ainda tem muita história para ser contada.”