O crepúsculo da esperança Denso e incômodo, mas sempre íntegro e pictórico, "Mais pesado é o céu", de Petrus Cariry, discute as ruínas de pessoas com um passado afogado e um futuro entregue ao horizonte

André Guerra
andre.guerra@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 18/08/2023 03:00

A destruição de pessoas e de um povo se dá sobretudo pelo apagamento de suas memórias. Um passado submerso, escondido e encoberto transforma o presente em uma existência igualmente extinta antes mesmo de terminar – e o futuro em um vazio hipnótico. Assim argumenta e assume como estado de espírito o drama Mais pesado é o céu, do cearense Petrus Cariry (Clarisse ou alguma coisa sobre nós e O barco), exibido na mostra competitiva de longas do Festival de Gramado, onde gerou reações fortes de admiração pela beleza plástica e desconforto pela densidade da narrativa.

O passado em questão é o da antiga Jaguaribara, cidade do interior do Ceará que foi arbitrariamente desocupada para virar represa. O progresso impiedoso, aquele que ignora a cultura local e atropela a preservação dos sentimentos humanos, tirou as pessoas de suas casas e provocou não apenas danos emocionais e financeiros, mas também um legado de destruição ecológica. Esse contexto é essencial para se absorver a experiência do longa de Petrus, no qual Antônio (Matheus Nachtergaele) é um homem em busca de dias melhores que acaba encontrando Teresa (Ana Luiza Rios), uma jovem que acabou de encontrar um bebê abandonado em um barco. Os dois protagonistas partilham do mesmo passado na cidade submersa e as memórias em comum fazem com eles que se unam para tentar sobreviver à beira da estrada.

Cineasta de rigor estético invariável, com composições paisagísticas não somente sublimes como incrivelmente narrativas e simbólicas, Petrus encena Mais pesado é o céu num equilíbrio curioso entre o realismo situacional e um certo tom de alegoria, o que se reflete nos diálogos pausados e na carga dramática da trilha sonora. Desde a primeira cena, a música e as imagens criam uma sensação de presságio e sugerem uma tragédia que, bem antes de ter ordem objetiva, está implícita nos olhares tristes e às vezes acomodados dos protagonistas.

Apesar da ideia de renascimento representada pelo bebê e a justiça e gentileza denotadas por coadjuvantes pontuais – participações excelentes de Buda Lira, Danny Barbosa e Sílvia Buarque –, Mais pesado é o céu submete Teresa e Antônio a provações de fome, cansaço e, no caso dela, violência mais intensas a cada cena – o que, no decorrer da segunda metade, compromete consideravelmente o ritmo e o investimento emocional do filme.

O assunto central, porém, jamais é esquecido pelo roteiro e pela forma: o horizonte de desespero aqui parece não ter fim. Mais pesado é o céu, no fundo, trata desse limbo em que tantas pessoas ficaram tanto após o fim de Jaguaribara, anos atrás, quanto na crescente desassistida às minorias sociais testemunhada na última virada de década. As soluções para todos os obstáculos que surgem na história podem até existir, mas nesse crepúsculo da esperança, a luz no fim do túnel mais encandeia a vista do que proporciona uma perspectiva de libertação.

“Não interessa ao cinema de Petrus a angústia neurótica do personagem, mas o ‘em geral’ da emoção. Então, foi mais leve do que pode parecer para quem assiste ao filme pronto, já que estávamos protegidos pela beleza do plano, o que ele busca incansavelmente. Na era digital eu só vi dois diretores com tanto amor pelo quadro: a Lucrécia Matel e o Petrus. E para nós, atores, isso é um grande desafio, já que estamos fazendo parte de uma pintura viva”, afirmou Matheus Nachtergaele ao Viver.