DIARIO + SAúDE » "Todo processo visto a partir das pessoas" Entrevista: Jailson Correia // Secretário de Saúde do Recife

Publicação: 12/09/2018 03:00

Mosquitos estéreis para evitar novas epidemias de arboviroses. Sistemas que permitem ao usuário das Unidades Básicas de Saúde ver os resultados de exames online. Criação de uma central de monitoramento em tempo real do trânsito para produzir roteiros inteligentes para as ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Muito associada sempre ao serviço privado, a tecnologia também está transformando a realidade da saúde pública. Esses são exemplos de processos que estão sendo implementados nos serviços municipais de saúde do Recife. Ex-diretor de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, o atual secretário de Saúde do Recife, Jailson Correia, defende que as tecnologias devem ser usadas respeitando as evidências científicas.

Como conectar tecnologia e humanização na saúde?
É preciso pensar sempre a partir de uma demanda em relação à saúde das pessoas, quais as necessidades da população, qual o conflito que precisa ser trabalhado. Há um portfólio de novas tecnologias e novos produtos desenvolvidos a partir de incrementos tecnológicos no mercado. De um lado, há a pressão para que esses produtos sejam incorporados e adquiridos pelos serviços de saúde sem se identificar se isso atende a uma necessidade real das pessoas. Acreditamos muito mais no caminho inverso. A partir da epidemiologia, do problema real das pessoas, daquilo que funciona para solucioná-lo, desenhar soluções tecnológicas. Aí você consegue construir uma incorporação tecnológica dentro de uma visão em que o indivíduo e a coletividade estão em primeiro lugar. Tendo isso como princípio norteador, a incorporação tecnológica se dá de uma forma natural e, portanto, mantém relação de cuidado. É a tecnologia a serviço de um cuidado humanizado.

Há exemplos disso no Recife?
Tentamos fazer do Hospital da Mulher um grande modelo. O hospital tem alta densidade tecnológica, equipamentos sofisticados, entretanto a marca registrada é a humanização no atendimento. A gente acha que a tecnologia pode estar a serviço de um tratamento mais qualificado, mas sem perder a humanização. A gente pode falar também do Saúde Ambiental Digital, uma forma de valorizar o trabalho do agente de saúde ambiental e controle de endemias no campo e produzir um banco de dados útil para saber se estamos conseguindo cobrir as áreas que precisamos da cidade. Você tem um aparelho que faz o georreferenciamento de cada uma das ações. É um banco de dados que será olhado em conjunto com outros bancos de dados e permite saber se o programa nacional de controle de endemias é efetivo. É isso que acontece quando se parte do pressuposto da necessidade real, a valorização do profissional e a tecnologia como instrumento de apoio a isso.

Qual o desafio para fazer com que as inovações desenvolvidas na academia ou no mercado possam se transformar em ações e políticas públicas de saúde?
Existe um campo no conhecimento, relativamente novo, chamado ciência translacional, no sentido de tradução. Surgiu porque havia uma grande distância entre o conhecimento científico, o produto e a utilização. Então, a abordagem de gestão de ciência e políticas públicas tenta acelerar o processo, fazendo pesquisa partindo de um problema real. Não significa anular a importância da pesquisa básica, mas focar o investimento nessa tradução mais rápida e ganhar em velocidade de incorporação. Se viu que muita gente morria nessa espera. Todo esse processo pode ser discutido a partir das pessoas, entendendo o SUS como motor do desenvolvimento nacional na área de ciência e tecnologia. Não basta ter um produto, a gente precisa que ele caiba em uma linha do cuidado, apresentar ganhos na saúde da população em larga escala.

O SUS tem conseguido equacionar essa distância entre novas tecnologias e o atendimento na ponta?
Há um debate importante, da universalidade da equidade do sistema. Às vezes, a repercussão do medicamento para a linha de cuidado das pessoas é ínfima. Não justifica a tomada de decisão para incorporar no sistema de saúde. Mesmo nos países desenvolvidos, há sempre uma demanda infinita para uma capacidade de execução finita. Novos produtos surgem o tempo todo, mas a capacidade de qualquer sistema é limitada. O Brasil tem estabelecido mecanismos para dar mais inteligência à tomada de decisão, como a Conitec, que surge dentro de um cenário de decisões tomadas por via judicial. A luta é melhorar o financiamento do sistema para que as decisões sejam tomadas com base em uma discussão madura, sob evidências científicas, avaliando um ganho real na qualidade de vida.

Além da tecnologia mais associada há medicamentos e máquinas de última geração, há outra que é mais básica, como os aplicativos. Como essa segunda categoria vem sendo incorporada no Recife?
Essas tecnologias podem ser usadas a serviço da mudança de comportamento da população, que podem mudar o perfil de doenças. Como por exemplo os aplicativos que estimulam a adesão de hábitos de vida saudáveis. No Recife, temos um exemplo concreto. Uma inovação tecnológica de geolocalização que permite saber onde se pode pegar camisinhas de graça ou fazer testagem para HIV e sífilis. Uma empresa de pequeno porte nos apresentou a solução e hoje o aplicativo “Aqui tem camisinha” já está disponível para a população. Temos também ideias mais ambiciosas, como o link do laboratório. Nesta semana, vamos divulgar um link oficial que permitirá ao cidadão ver os resultados dos testes de laboratório com um login e senha, como já acontece em clínicas privadas. Isso reduzirá o tempo de retorno dos exames e empoderará o usuário a conhecer os resultados. O próprio saúde ambiental digital será expandido. Também aderimos ao Colab, como informação de gestão pública.

A cidade também usará a tecnologia do mosquito estéril para supressão da população de Aedes aegypti. Quando isso acontecerá?
É uma tecnologia pioneira no sentido de nunca ter sido usada nessa escala que faremos aqui. Estamos em parceria com o CNPq, a Moscamed e a UFPE. É um projeto de várias fases. Existe uma conversa avançada para avaliação técnica, financiamento e desenvolvimento das linhagens. Em Juazeiro (BA), estão trabalhando para a produção da linhagem que tenha um híbrido entre a cepa do mosquito de laboratório com características de resistência. Assim que os recursos estiverem garantidos, entraremos na fase de liberação dos mosquitos. Os locais já foram escolhidos, os bairros de Mangabeira, Macaxeira e Morro da Conceição. Estamos conversando com lideranças comunitárias. Juazeiro produzirá os ovos dos mosquitos controlados. No Recife, faremos a eclosão e, em parceria com a UFPE, a esterilização com uma pequena quantidade de radiação. Os machos estéreis vão competir no ambiente com os selvagens, para que haja a supressão. Como o Aedes não é nativo da região, não haverá danos ambientais. A gente espera que, até abril do próximo ano, eles estejam no ambiente.

A tecnologia também vem sendo usada para ajudar na gestão municipal de saúde?
Estamos numa fase de transição do sistema que tínhamos no Ministério da Saúde. O instrumento que tínhamos permitia à unidade de saúde saber determinado indicador, como o número de hipertensos cadastrados. Isso era um dado epidemiológico. Agora há uma mudança na percepção importante, que parte de um indicador de saúde e não de uma meta. Essa transição se dá com a informatização da maioria das nossas unidades. A utilização dos prontuários eletrônicos na maioria das unidades. Hoje temos 93 das 130 informatizadas. Até o fim do ano alcançaremos 90% do total.