ENTREVISTA » "As palavras também ajudam a tocar o bebê"

Publicação: 19/10/2019 03:00

Educação Infantil Vínculo, movimento e autonomia na primeira infância.
Suzana Macedo Soares é especialista em Educação Infantil pelo Instituto Vera Cruz, trabalha desde 2004 com formação continuada de educadores. A partir de 2011 se dedica ao estudo da Abordagem Pikler, promovendo formações, consultorias e oficinas para educadores com elementos dessa abordagem. Em 2013 aprofundou seus conhecimentos com Anna Tardos, em Budapeste e, em 2018, na Associação Pikler Lóczy de Paris. Autora do livro Vínculo, Movimento e Autonomia %u2013 Educação até 3 anos. Coautora dos livros: Estudos e Reflexões de Lóczy e O Acolhimento de Bebês: Práticas e Reflexões Compartilhadas. Participa do Conselho Consultivo da Associação Pikler Brasil; é integrante da RNPI (Rede Nacional da Primeira Infância) e da Rede Pikler.

Entrevista: Suzana Macedo Soares //Especialista em Educação Infantil pelo Instituto Vera Cruz

Qual a importância dos cuidados na primeira infância segundo a abordagem Pikler?
Cuidar é um dos pilares mais importantes da Abordagem Pikler. É durante os momentos dos cuidados que o bebê e o adulto vão construir um vínculo de confiança, indispensável para o bom desenvolvimento físico e emocional do bebê e da criança pequena. Não são só as mãos que tocam, mas as palavras também tocam o bebê. Enquanto cuida, o adulto pode falar com a criança sobre o que está acontecendo, antecipar suas ações e nomear as reações do bebê. Emmi Pikler foi uma médica húngara, pediatra e ortopedista, que dirigiu uma instituição de abrigamento em Budapeste por mais de 40 anos e pesquisou o desenvolvimento de crianças de 0 a 3 anos. Ela considera que a criança já nasce capaz e pode se comunicar com o adulto de referência. Muito antes de compreender o conteúdo das palavras o bebê vai entendendo os gestos e percebendo a intenção dos adultos pelo tom e a melodia da voz. É preciso sensibilidade, gestos lentos e pausas para perceber a reação da criança, que pode responder com um gesto, com expressão facial, com a pele que se crispa. O adulto deve ser treinado para estabelecer esse diálogo corporal com o bebê que, mesmo bem pequenininho pode e deve participar desses momentos. Estabelecer uma verdadeira comunicação durante os cuidados favorece a segurança emocional tão necessária para a criança. Suprida de suas necessidades básicas ela pode, aos poucos, se movimentar no chão livremente, explorar objetos e interagir com o ambiente ao seu redor.

Qual a relação do brincar e do desenvolvimento motor na primeira infância?
As duas coisas estão interligadas. Emmi Pikler demonstrou, por meio de uma pesquisa realizada com 722 bebês, que, quando têm boa saúde física e psíquica eles podem se mover com liberdade, conquistam o controle dos seus movimentos e passam por todas as etapas da motricidade por conta própria, sem que os adultos precisem ensinar ou adiantar nenhuma fase, nem colocar a criança em uma posição que ainda não foi conquistada por ela. Para que isso ocorra, o bebê deve ser colocado deitado no chão firme, de barriga para cima, a partir dos 3 meses de idade, com objetos para brincar próximos aos seus ombros, como um lenço de tecido ou outro objeto leve e fácil de pegar. Então, o próprio desejo de aproximar o objeto de si e explorar suas qualidades é o que dá impulso ao movimento.  E é importante que a iniciativa de ir ao encontro do objeto seja dele mesmo. Dessa forma, ele pode brincar enquanto troca de posturas e se desloca, explorando seu entorno em seu próprio ritmo, de acordo com sua vontade e competência, sem a interferência direta do adulto. Este deve preparar o ambiente, observar e acompanhar o desenvolvimento, estimulando apenas indiretamente. O bebê vira de lado, de costas, rola, se arrasta, engatinha, se senta, ajoelha, fica em pé e anda sem apoia. Em cada uma dessas fases ele brinca de forma solta e alegre com os objetos instigantes que o adulto cuidador coloca no espaço de brincar. Estes objetos devem estar de acordo com a faixa etária e as preferências singulares de cada um.

O corpo expressivo do bebê, pode nos falar um pouco sobre isso?
O bebê já nasce podendo expressar suas emoções e um adulto atento, que tenha estabelecido um vínculo afetivo com ele, pode tentar compreender o que ele está sentindo (ainda que nem sempre seja possível precisar), nomear esses sentimentos e organizar seu entorno para que ele possa experimentar por meio de movimentos e do brincar, suas necessidades internas. Esse diálogo corporal estabelecido de forma saudável vai facilitar, mais tarde, a aquisição da linguagem, à medida em que o bebê sente que é compreendido, sente prazer nessa troca com o adulto e deseja manter e aprimorar essa comunicação.

Como e quais os conteúdos são trabalhados na formação continuada para professores de educação infantil?
Emmi Pikler estudou o bebê de forma global, a partir de vários pontos de vista. Ela estava interessada na saúde física e mental da criança pequena e na educação participativa.  Propunha que o educador continuasse sempre em formação e supervisão e pudesse documentar e compartilhar suas observações. A Abordagem Pikler engloba conhecimentos sobre a motricidade livre, brincar, postura do educador, autonomia, segurança emocional, construção do vínculo com o adulto, constituição do sujeito, alimentação, banho, trocas, desfralde, sono, constituição da linguagem, entre outros.

Qual é o novo olhar sobre o desenvolvimento do bebê que a abordagem Pikler vem nos revelar?
Esse novo olhar é a percepção da potência do bebê sadio, que já vem com a programação genética para expressar suas necessidades básicas ao adulto de referência; de seduzir com seu encanto esse adulto e garantir os cuidados; de se mover e desenvolver sua motricidade livre; de explorar e brincar com os objetos ao seu redor e desenvolver sua cognição a partir de suas experiências concretas iniciadas por sua iniciativa e desejo. Compreendendo essa capacidade inata do bebê, a necessidade dele se interessar pelo entorno e a engrenagem que rege o desenvolvimento psicomotor, o adulto precisa controlar seus impulsos de fazer tudo por ele, de adiantar seus desejos e finalizar algo que ele começou e está tentando terminar. Interromper os processos iniciados pelo bebê o priva de suas conquistas e do sentimento de competência e segurança implicados nelas.